Opinião 1

Os lugares em que vivemos na infância adquirem sobre nós, por um especial dom da memória, configurações de sonhos acordados.

Quando esses lugares deixaram muitos anos de ser por nós frequentados, mais a sua realidade se esfuma no nevoeiro da nossa memória e ganha nas nossas recordações um brilho diferente. Como o poeta Robert Desnos dizia á amada distante. “j””ai tant rêvé de toi que tu perds ta réalité”.

Os Açores, onde vivi na minha remota infância, foram para mim durante muito tempo essa memória sonhada e cristalizada em imagens de que não podia confirmar a plena adequação à realidade.

Lembrei-me hoje dos Açores por ter já passado um ano sobre a morte do meu amigo Mário Mesquita, por ter sido reeditada a importante obra de José Medeiros Ferreira sobre a revolução portuguesa e por um meu outro amigo, o Eduardo Paz Ferreira (felizmente vivo e são) ter acabado de publicar um livro sobre esta nossa experiência melancólica de envelhecer.

Era uma geração de açorianos (a que me faltou acrescentar os nomes do Jaime Gama e do Horácio César) que se impunham nos nossos debates no meio estudantil, naqueles anos que eram os anos finais do Estado Novo (mas nós não sabíamos). E distinguiam-se por apresentar uma alternativa política social democrata a um meio associativo universitário dividido entre uma extrema direita cada vez menos visível e presente, um Partido Comunista ativo e reorganizado, após a grande repressão de 1965, uma plêiade de movimentos “esquerdistas”, fiéis, por cima dos seus combates internos, à “linha chinesa” e um movimento trotskista que tinha menor repercussão. Na minha Faculdade, a luta travava-se entre os PCs e seus “compagnons de route” e esse outro arquipélago esquerdista, em que ganhava preponderância o MRPP.

O que então eu sentia nesse grupo de colegas açorianos era uma independência das cartilhas marxistas rudimentares que nós seguíamos e um espírito de ceticismo e dúvida em relação a todos os dogmas, que lhes acentuava um altivo e diferente posicionamento intelectual.

Não que eu fosse então atraído por este pensamento livre, eu que glosava meticulosamente os conceitos de Althusser e não via salvação fora daquele marxismo estreito e fechado da nossa geração. Mas a minha amizade com Mário Mesquita veio abrir-me o espírito para um pensamento mais solto e heterodoxo, embora eu não me identificasse então com a Ação Socialista Portuguesa, de que estes meus amigos eram militantes, mas que, para mim, não era suficientemente revolucionária…

A revolução de Abril, os anos e as lutas do PREC vieram ensinar-me que a liberdade e a democracia são conquistas que nunca poderemos deixar cair e colocaram-me do lado dos vencedores do 25 de novembro. O 25 de novembro não foi, ao contrário do que hoje se quer fazer crer, uma vitória da direita, foi simplesmente uma vitória da democracia e do 25 de abril.

Destes meus amigos e companheiros de geração, destaco Mário Mesquita, uma inteligência rebelde, independente e avessa a quaisquer sujeições, mesmo as que pudessem vir do seu lado Mas talvez houvesse um espírito comum naquela geração de jovens açorianos, que era o serem radicalmente avessos a quaisquer dogmatismos.

José Medeiros Ferreira teve a lucidez, que foi única nesse tempo nos campos oposicionistas, de entender que seria das próprias Forças Armadas que viria o impulso libertador, ideia que para a maioria de nós, a poucos meses do 25 de abril, parecia impossível de aceitar.

Jaime Gama foi meu ministro e manteve, a par da sua heterodoxia crítica, um impiedoso riso sardónico sobre todas as ilusões e os ídolos da tribo…

Eduardo Paz Ferreira construíu recentemente, através de um conjunto de obras, tão bem fundamentadas como bem argumentadas, uma crítica coerente e radical aos dogmas financistas dos nossos financeiros, aos totens e tabus dos nossos economistas. O seu último livro é uma chamada de atenção sobre os idosos, que tantas vezes são injustamente postos de lado na nossa vida social.

Este grupo de açorianos inconformistas teve um papel vivo e estimulante para a minha geração. Porque me lembro hoje deles e dessas ilhas onde eu vivi? Talvez porque exista alguma relação entre aquela condição de ilhéu e um ceticismo lúcido e crítico, que se não deixa embalar em ilusões, mas que não abdica na defesa dos princípios fundamentais.

À memória de Mário Mesquita

 

Luís Castro Mendes

Diplomata e escritor

Deixar uma resposta

O seu endereço de correio electrónico não será publicado. Os campos obrigatórios estão assinalados com *