Açores: cidadania e cultura

Opinião

Vitorino Nemésio definiu “Açorianidade” como a imaginação de ser açoriano, que o desterro afina e exacerba. “O afastamento define ou aumenta o sentimento de pertença e a ligação espiritual aos Açores”. Regresso sempre com júbilo a este arquipélago mágico, que pode ser considerado Portugal em laboratório. Se Mau Tempo no Canal é um dos grandes romances da literatura da língua portuguesa, a verdade é que define com mestria um microcosmos no qual se destacam as personagens de Margarida Dulmo e João Garcia, tendo como pano de fundo o canal entre as ilhas do Faial e do Pico e como enredo as complexas tensões de uma sociedade permanentemente confrontada entre o fechamento e a necessidade de abertura. E lembro Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (1522-1591), ouvindo-o dizer: “pena-se muito nesses mares, mas aprende-se mais que nua esquiola”. E entre referências literárias e a natureza, o escritor descreve em diálogo o lamento alegórico, que representa a verdade, desterrada e hostilizada, saudosa de uma idade de ouro, anterior ao povoamento da ilha… São os mitos que enchem estas ilhas encantadas como reminiscência da Atlântida, de beleza estonteante.

Vim a Ponta Delgada, a convite de Pilar Damião Medeiros, para recordar os trinta anos do Forum Açoriano com a saudosa lembrança de Mário Mesquita que me convidou para o lançamento da associação cívica, que em 1992 fez publicar o manifesto Pensar os Açores, hoje. O objetivo era promover a reflexão sobre temas políticos, económicos, sociais e culturais, com especial destaque para as questões relacionadas com os Açores, pretendendo-se que esse debate sobre o futuro da Região “se fizesse fora dos quadros institucionais, ou seja, dos órgãos do governo, partidos políticos, instituições oficiais ou oficiosas”. Daí a necessidade de abertura “a cidadãos de diferentes convicções políticas e ideológicas”, convergindo os promotores na defesa da democracia e da autonomia regional, que preocupavam os cidadãos e a sociedade civil. Destacava-se, na altura, a situação estratégica da Região no novo quadro mundial europeu e atlântico, após a queda do muro de Berlim, bem como o risco de um relacionamento equívoco do governo da República com a Região, urgindo contrariar tendências centralistas.

Para responder a estas e outras questões prementes havia que promover debates e reflexões sérios de modo a preservar a autonomia e o desenvolvimento, como lembrou Gilberta Rocha. Na primeira Assembleia Geral foram eleitos o Presidente da Direção, Roberto Amaral, e o Presidente da Mesa da Assembleia Geral, Álvaro Monjardino, bem como Renato Borges de Sousa, saudoso amigo, defensor empenhado da cultura açoriana, da língua portuguesa e da qualidade, exigência e justiça na Educação. Em 1995, seria publicado o volume Pensar os Açores, hoje que merece releitura, considerando que os desafios correspondentes ao desenvolvimento humano e à democracia regional continuam a exigir muito trabalho e empenhamento.

Na terra de Antero de Quental, arauto da poesia, da liberdade, igualdade e justiça, recordo amigos açorianos que já nos deixaram e com os quais aprendi que a democracia está sempre incompleta, exigindo pensar longe e largo, abrir novos horizontes de memória e progresso com determinação para o seu aperfeiçoamento. Falo de José Medeiros Ferreira, Mário Mesquita e António Machado Pires, para me ater apenas aos falecidos. De facto, precisamos de pensar e construir instituições democráticas capazes de garantir uma verdadeira mediação no sentido da participação e da representação dos cidadãos, do mesmo modo que a legitimidade do voto e do exercício e o primado da lei obrigam a um respeito intransigente pelos direitos humanos e pelo Estado de Direito, enquanto uma cultura de paz exige o multilateralismo, a diversidade, o primado da dignidade da pessoa humana e o respeito pelo princípio da subsidiariedade. É tempo de cidadania e cultura.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkia

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