Em diversos canais de televisão, de diferentes países, vi repetidas vezes imagens, obtidas com um telemóvel, do atentado de Annecy (perpetrado por um homem que, com uma faca, num parque público, feriu seis pessoas, incluindo quatro crianças). Sem querer favorecer mais uma das generalizações mediáticas que enxameiam o nosso quotidiano (a apresentação e contextualização dessas imagens não era uniforme, divergindo de canal para canal), tais imagens reconduziram-me a uma velha questão pouco pensada no meio jornalístico.
A saber: porque é que as imagens de telemóvel, muitas vezes sem assinatura, são automaticamente reconhecidas como matéria viável e pertinente de informação? A pergunta é paralela a outra, ainda mais recalcada: por que é que se fazem notícias “de acordo com as redes sociais”, como se as ditas redes – território virtual que, para lá do seu uso inteligente, acolhe infinitas grosserias e irresponsabilidades – fossem uma fonte segura e inquestionável de informação global?
Há, aqui, um novelo de problemas que, na brevidade destas linhas, não será possível sequer resumir. Em qualquer caso, creio que vale a pena voltar a sublinhar a perversidade cognitiva em que vivemos, levando-nos a aceitar, ou mesmo a promover, como “naturais” imagens que são produto banal e agressivo de um voyeurismo que triunfou também como sistema de (des)educação dos olhares.
Num pequeno, mas muito conciso e esclarecedor, apontamento no programa O Eixo do Mal (SIC Notícias), Pedro Marques Lopes referiu isso mesmo, chamando a atenção para o facto de aquelas imagens (e a sua olímpica difusão, acrescento eu) serem reveladoras da “sociedade em que nos estamos a tornar” – não poucas vezes, comportamo-nos como peões incautos de valores comunicacionais simplistas e pueris, induzidos pelo aparato tecnológico que usamos e, num certo sentido, habitamos.
A vulgarização das imagens – sustentada e empolada por uma inusitada facilidade técnica de produção e difusão – foi “promovida” a assinatura individual. Na prática, quem regista algo de perturbante (como o atentado de Annecy) ou se expõe de modo mais ou menos caricatural e “erótico” (veja-se a tristeza existencial de milhões de selfies colocadas na internet), julga, ou é levado a julgar, que conquistou uma identidade imaculada que, além do mais, lhe garante os prazeres (?) da glória digital.
Será preciso evocar o clássico Citizen Kane / O Mundo a Seus Pés (1941) em que Orson Welles nos ensina que assim que muda o narrador (ou, em termos atuais, aquele que regista as imagens), toda a história muda? Entre os “fabricantes” de imagens do presente, quantos são sensíveis ao facto – indissociável de muitos séculos de história literária – de a mudança de ponto de vista implicar inevitáveis mudanças narrativas na perceção do mundo à nossa volta? Será que aprenderam alguma coisa a ver A Condessa Descalça (1954), de Joseph L. Mankiewicz, com o seu cruzamento de memórias elaboradas a partir de diferentes personagens? Ou consideram que a “antiguidade” de filmes como estes os condena ao caixote do lixo dos nossos delírios virtuais?
Vimos o atentado de Annecy através de imagens de um telemóvel: voyeurismo e informação passaram a ser a mesma coisa?
Agora, há os novos “cidadãos do mundo” que julgam aceder a uma verdade única e unívoca quando carregam num botão mágico do seu telemóvel. São personagens de um deprimente imaginário virtual que, por exemplo, leva alguns concorrentes de concursos de televisão a justificarem a sua ignorância pelos limites do seu próprio calendário: “Ah, quando isso aconteceu eu ainda não tinha nascido…” O que está em causa, entenda-se, não é o saber seja de quem for (mal ou bem, cada um vive no interior de muitas fronteiras cognitivas), mas sim a noção de que a complexidade do mundo nasceu com a sua própria entrada no universo dos humanos.
Ficando pelas vésperas do nosso glorioso século XXI, lembremos uma obra-prima do ano 2000: Memento, de Christopher Nolan, com Guy Pearce no papel central. Pearce interpreta um homem cuja mulher foi assassinada, ao mesmo tempo que luta contra a perda sistemática de memórias recentes. Tentando superar a sua limitação, recorre a imagens Polaroid (e também notas escritas e tatuagens) para reter as informações que vai obtendo. Através das emoções do thriller, fica uma preciosa lição narrativa: conhecer é um complexo labor (narrativo, justamente) em que ninguém detém uma verdade universal e definitiva. Quando tal labor passar a ser uma colagem obscena de imagens de telemóveis, estaremos a viver numa festiva ditadura virtual.
João Lopes
Jornalista