O pensamento hegemónico, pelo menos no Ocidente Alargado e suas adjacências, incluindo, naturalmente, a imprensa e certos intelectuais anódinos, apressou-se a focar-se na natureza do Hamas, para tentar explicar o atual reacender da guerra no Médio Oriente. Mas essa narrativa, pífia, cínica e hipócrita, não resiste a uma mera comparação visual da evolução do mapa daquela região do mundo, em guerra desde sempre. Meio olho chega para atestar como os palestinos têm sido espoliados gradualmente do seu território desde o fim da 2.ª Guerra Mundial, ao ponto de a possibilidade – estabelecida através de acordos internacionais, com o aval da ONU – de terem igualmente um Estado, que possa coexistir com Israel, se estar cada vez mais a transformar numa simples miragem.
Recorde-se os factos. De acordo com o plano da ONU de 1948 para implantar na referida região o Estado de Israel, ao lado do Estado da Palestina, a Cisjordânia, juntamente com a faixa de Gaza, fazia parte deste último. Em 1967, porém, o território foi tomado militarmente por Israel, que se apressou a edificar no local assentamentos para os colonos judeus, decisão que está na base dos conflitos atuais. De lembrar aos esquecidos, a propósito, que essa política de colonatos adotada pelos sucessivos Governos sionistas de Israel é condenada pela maioria da comunidade internacional.
Alheio a isso, entretanto, o atual governo do país anunciou em junho deste ano que iria prossegui-la. No final desse mês, ou seja, há pouco mais de três meses, as autoridades israelitas lançaram a maior operação militar na Cisjordânia em 20 anos, não me recordando, pelo menos eu, de ver entre os que apontam hoje o dedo ao Hamas comoção idêntica aquando dessa recente ofensiva israelita naquela região. Por outro lado, Telavive iniciou um movimento diplomático para normalizar as suas relações com os países árabes, incluindo a Arábia Saudita, cujo eventual sucesso implicaria (implicará) naturalmente a alienação dos interesses palestinos.
(…) Como disse o embaixador palestino na ONU, Riyade Mansour, é preciso lidar com as raízes da crise, nomeadamente [o acréscimo é meu] com a ocupação dos territórios palestinos por parte de Israel.
Desespero. Essa é, pois, a palavra que precisa de ser dita para explicar a decisão do Hamas de atacar Israel no último fim de semana. Os seres bem pensantes que, esquecendo tudo o resto, se focam na natureza do Hamas, conhecido pelo seu recurso ao terrorismo, deveriam questionar igualmente a natureza de certas práticas das autoridades israelitas, da guerra de apropriação e anexação que mantêm na região até certos atos da sua temível polícia secreta. Quanto aos danos civis da guerra, qualquer que ela seja, acusar apenas uma das partes tem nome: parcialidade.
Dentro de Israel, felizmente – e o que demonstra a natureza democrática do país, apesar dos perigos existentes, devido à aliança entre o primeiro-ministro e as forças locais da extrema direita -, há vozes que não hesitam em ir ao fundo do problema. Um exemplo é o do jornal Haaretz que, no último domingo, 9, escreveu: “O desastre que se abateu sobre Israel no feriado de Simchat Torá é da clara responsabilidade de uma pessoa: Benjamim Netanyahu. O primeiro ministro (…) falhou completamente na identificação dos perigos para os quais conduzia conscientemente Israel ao estabelecer um Governo de anexação e desapropriação (…), ao mesmo tempo que adotava uma política externa que ignorava abertamente a existência e os direitos dos palestinos.”
O Haaretz acrescentou que, após a sua vitória nas últimas eleições, o primeiro-ministro israelita adotou medidas de limpeza étnica em partes do território em disputa, como as colinas de Hebron e o vale do Jordão, e para expandir massivamente os colonatos e reforçar a presença judaica no Monte do Templo, perto da Mesquita de Al-Aqsa; começou também a alardear um iminente acordo de paz com os sauditas, no qual os palestinos não receberiam nada.
Ou seja: a guerra naquela região do mundo não caiu do céu e os recentes ataques do Hamas são uma autêntica tragédia anunciada. Por isso, e como disse o embaixador palestino na ONU, Riyade Mansour, é preciso lidar com as raízes da crise, nomeadamente (o acréscimo é meu) com a ocupação dos territórios palestinos por parte de Israel. Se isso for feito, o espaço para o terrorismo na região será reduzido, senão eliminado. A minha hipótese, porém, é que os países que poderiam pressionar Israel a abandonar as suas políticas de inviabilização da Palestina não o fazem porque lhes interessa a todos provocar reações desesperadas como as do Hamas, precisamente para levar até ao fim as referidas políticas.
Uma sugestão final à imprensa mainstream (só para constar, eu sei): prestariam melhor serviço à opinião pública se, ao invés de fazer coro com as declarações vingativas das autoridades sionistas, publicassem em todas as primeiras páginas o quadro com a evolução do mapa da região desde 1948 até agora.