Quatro anos foi o tempo necessário para ver Ricardo Ribeiro a regressar aos discos. ‘Terra que Vale o Céu’ é o novo trabalho do fadista, que será lançado a 27 de outubro (próxima sexta-feira), o qual, além de incluir temas mais “profundos”, já característicos do músico, traz também “graça e alegria”.
O motivo prende-se com Francisco, o filho mais novo de Ricardo Ribeiro, que nasceu há quase dois anos.
Em conversa com o Fama ao Minuto, o artista falou-nos sobre ele, o filho, a forma como vê a música e o fado, a sua casa de campo em Montemor-o-Novo para onde se mudou há pouco tempo, o seu amor pelo Alentejo e pelo campo, e sobre outra das suas paixões: o restauro de peças.
Vai lançar um novo disco. Ao fim de tantos anos de carreira, ainda sente aquele nervoso miudinho?
Não há filhos iguais aos outros, cada filho é um filho. Estou muito entusiasmado e contente, porém, sem aquelas grandes expectativas para que não seja uma coisa que depois nos vá entristecer. Estou com a sensação de missão cumprida e de ter feito o melhor que sei e que podia.
O seu último disco foi lançado há quatro anos. Porquê este tempo de espera?
Foi um tempo necessário. Mudei-me para o Alentejo e não estava numa fase muito profícua para lançar discos, na minha opinião. Tínhamos vindo de uma pandemia, depois rebentou uma guerra e parece que há outra. [Mas] agora foi altura de editar outro.
Apesar de eu ser um indivíduo com uma apetência por uma música mais profunda, neste disco também canto um bocadinho da graça e da alegria, até porque fui pai pela segunda vez há relativamente pouco tempoNum dos seus textos diz que “‘Terra que Vale o Céu’ são páginas íntimas que vou vivendo e sonhando”.
Exato. Quando se escava aquela terra que há no peito começamos a perceber que é preciso primeiro ganhar a terra para depois irmos buscar o céu. Tem a ver com a vida interior que se tem.
Apesar de eu ser um indivíduo com uma apetência por uma música mais profunda, neste disco também canto um bocadinho da graça e da alegria, até porque fui pai pela segunda vez há relativamente pouco tempo – tenho um filho com um ano e dez meses e isso muda tudo. No fundo, é aquilo que a pessoa vai vivendo e sonhando para ele e para os outros.
À medida que os anos vão passando essa intimidade com a música vai aumentando ou sempre se sentiu à vontade para escrever aquilo que sentia?
A música para mim é sempre um membro que eu tenho, imagine que em vez de ter dois braços, tenho três. Não me conheço sem música, é muito difícil dizer o que poderia ser, apesar de ter outros interesses.
Acho também que nunca se tem um à vontade pleno com a música, é algo muito delicado e a intimidade é muito relativa, tem várias entradas.
Então não trata a música por tu?
Não é essa questão, mas há um certo cuidado ou delicadeza com que eu trato a música. Há alturas em que se pode tornar distante, outras muito próximas, mas nunca nenhum músico consegue atingir a supremacia de saber toda a música.
A música também tem a ver com a descodificação que cada ser humano faz. Há um cuidado porque acho que é uma coisa tão delicada e poderosa que me faz ter muito respeito e solenidade.
Considera que hoje há essa falta de cuidado?
Quem sou eu para julgar? Percebo que temos este problema do negócio da música, tudo faz parte.
Costumo dizer que sou como um guardião. Tenho o hábito de pegar em peças que as pessoas acham que não têm valor nenhum e que não prestam para nada, e recupero-as. Se, por exemplo, me aparece uma peça do século XVIII e eu ficar com medo de lhe mexer, consigo recuperar a peça, mas protegendo-a e respeitando o que ela é na sua essência.
Em relação à música, é exatamente isto que se passa. Se tenho uma cantiga que não foi feita por mim, que é do princípio do século XX, se vou pegá-la, adulterá-la, para mim não faz muito sentido. Mas isso já é por uma questão de sensibilidade e de gosto.
Na música é isso. Há fados que à partida parece que estão mortos ou condenados. Pego neles e acho que os consigo reformar e trazê-los à vida. Daí me sentir um guardiãoPorquê esse gosto em recuperar coisas?
Tem a ver com o fado e a música em si. Tem a ver com a questão do desafio, e depois porque há objetos e peças que têm uma beleza em si, algo que está dentro delas que não sei explicar, que me obriga a pegar e a trazê-las ao que eram.
Na música é isso. Há fados que à partida parece que estão mortos ou condenados. Pego neles e acho que os consigo reformar e trazê-los à vida. Daí me sentir um guardião.
Guardião daquele fado mais tradicional que as pessoas se acostumaram a ouvir. Se há outros fadistas que optam por seguir caminhos mais alternativos, o Ricardo será mais definido nesse sentido?
E não só. Repare que este disco está muito ligado ao mediterrâneo e ao oriente, porque é a música pela qual sou influenciado. Não vou discutir com historiadores, antropólogos e mais coisas acabadas em ‘ólogos’, para mim somos um país do Atlântico, mas somos um povo do mediterrâneo.
Os meus fados são muito influenciados pelo sul e pelo mediterrâneo. É o Ricardo que é muito definido, não é propriamente a sua música, porque tenho uma linguagem própria dentro das características que são o fado. O que não invalida que não seja contemporâneo naquilo que faço.
Tive a sorte de ter velhos que eram duros, mas que me diziam para ter cuidado, que me ensinavam, para mim foi uma bênção Já era assim no início da sua carreira?
Fui quase sempre assim porque tive a sorte de ter velhos comigo. As gerações de hoje têm uma grande dificuldade porque não há velhos, o que lhes torna a vida difícil nesse campo. Mais facilitada porque lhes é permitido fazer o que lhes dá na gana, mas é preciso ter alguma cautela. Agora, não vou ser eu o julgador dessas coisas.
Tive a sorte de ter velhos que eram duros, mas que me diziam para ter cuidado, que me ensinavam, para mim foi uma bênção.
Na altura percebia o que lhe diziam?
Há muita coisa que só percebo hoje em dia e que só comecei a perceber a partir dos 30, outras que percebi porque quase pela força fui obrigado a aprender.
Há quem goste muito de chamar purismo e tal, eu não gosto muito dessa coisa. Nada existe puro. Muitas vezes é uma questão da fragilidade e da delicadeza com que se mexe nas coisas. É como diz Platão: olha para as coisas como elas são e não como se aparentam. Isso é um caminho difícil e também não sou propriamente um iluminado, faço os meus disparates.
Os velhos de que fala eram o seu escape?
Sim, houve pessoas que ainda hoje me fazem imensa falta, porque me identificava muito com a forma como falavam, eram autênticos exemplos de vida, ainda hoje são. Pessoas que me ajudaram a moldar muita coisa não só no íntimo, na minha vida pessoal, mas também como profissional. Houve também outros, que não tinham a ver com o fado.
Sente-se feliz com o percurso que fez? Pessoal e profissionalmente?
Creio que até morrermos é uma constante aprendizagem. Não vejo que tenha chegado a um ponto de estagnação, estou sempre a mudar e a aprender, isso é o mais importante. Acho que tenho sido um indivíduo coerente, com os pés na terra e com uma vontade imensa de fazer por mim e pelos outros.
O que é que o chateia na indústria da música?
Há algumas coisas que chateiam, mas quando escolhemos um caminho temos de estar cientes de que existe sempre o seu oposto, aprendi a conviver com isso. Apesar de às vezes entristecer e frustrar um bocadinho, mas faz parte das regras do “jogo”. Há coisas que podem aborrecer e que poderiam ser mudadas, mas por outro lado vivemos uma era de grandes transformações, muito rápidas e confusas.
Claro, há alturas em que um tipo se sente mais desesperançado, não é de ferro. Nem ponho muito em causa o cantar, é mais a mim, o que faço e como estou a fazer. É uma questão de autoanálise e autocríticaMas esse lado menos bom nunca o levou a colocar em causa o caminho que escolheu?
Às vezes sim, há um certo desgaste, o que também é bom, mas acho que é impossível viver sem cantar, nem que seja cantar para os pássaros e para as árvores.
Claro, há alturas em que um tipo se sente mais desesperançado, não é de ferro. Nem ponho muito em causa o cantar, é mais a mim, o que faço e como estou a fazer. É uma questão de autoanálise e autocrítica.
É muito perfecionista?
Não sou, porque não tenho a ambição da perfeição, porque quando se a ambiciona, nunca se chega a ela. Tenho sonhos e quero concretizá-los, então talvez aí seja exigente, mas não tenho ânsias da perfeição, porque desgasta muito e faz perder o foco do que é realmente importante.
Porque é que foi viver para Montemor-o-Novo?
Vim viver para Montemor, nomeadamente para a freguesia de Cabrela, porque encontramos aqui um sítio em que podemos viver com a nossa maneira de estar e de respirar.
Sou muito campónio [ri-se]. Gosto muito das coisas do campo, da horta, adoro plantas. Aqui há uma paz. No Alentejo parece que o vento passa ajoelhado, nunca passa de péOs filhos também pesaram nessa decisão?
A minha filha mais velha não, apesar de já estar na faculdade em Évora, mas ficou felicíssima quando dissemos que vínhamos para o Alentejo. O Francisco, com um ano e dez meses, não teve grandes hipóteses. Ele não gosta de estar em casa, quer é estar na rua no alpendre, com os cães. Nota-se que é uma criança muito feliz. Estamos felizes por estar aqui.
Sou muito campónio [ri-se]. Gosto muito das coisas do campo, da horta, adoro plantas. Aqui há uma paz. No Alentejo parece que o vento passa ajoelhado, nunca passa de pé. Eu e a minha mulher muitas vezes, naquelas noites em que o céu está completamente limpo, sentamo-nos a contemplar o céu. É impagável.
Sente falta da capital?
A cidade que mais gosto no mundo é Lisboa e já conheci muitas cidades. Adoro ir e estar em Lisboa, mas viver, neste momento, prefiro aqui e acho que acabarei por aqui.
Esta casa foi recuperada por nós, é do final do século XIX e eu trabalhei aqui muito, portanto foi difícil conjugar treinos e ganhei algum peso. Mas para mim é relativamente “fácil”, porque já emagreci uma vez 52 quilos e é bom não esquecer que a obesidade é crónica, não é nenhuma falta de caráter, apenas uma doençaSendo a sua horta uma das grandes paixões, acredito que também seja útil para manter uma vida mais saudável?
Ajuda muito, apesar de agora estar no processo de perder o peso que ganhei com a pandemia. Esta casa foi recuperada por nós, é do final do século XIX e eu trabalhei aqui muito, portanto foi difícil conjugar treinos e ganhei algum peso. Mas para mim é relativamente “fácil”, porque já emagreci uma vez 52 quilos e é bom não esquecer que a obesidade é crónica, não é nenhuma falta de caráter, apenas uma doença. A horta é também porque gosto muito de plantas, tenho um alpendre carregado das mais diversas espécies.
O Francisco gosta de cuidar da horta com o pai?
Ele destrói mais do que ajuda, faz parte, mas adora, está sempre desejoso de ir para lá, para as galinhas. Caracóis então, é louco por caracóis. Anda com eles e só não os leva para a cama porque não deixamos.
Como é o Ricardo enquanto pai? Muito ‘babado’?
Q.B. Sou ‘babado’, mas também sou muito exigente. Ele é muito apaparicado por mim, pela mãe, pelos avós, portanto tem de haver aqui alguém um bocadinho mais duro, mas sou ‘babado’. O Francisco é uma coisa extraordinária, ele acorda de manhã com uma felicidade e uma alegria que contagia completamente o teu dia, não há como ficares triste. Isso transforma qualquer um.
Evidentemente que o amor não tem de ser uma coisa permissiva, permitir que a criança faça o que lhe dá na gana só porque sim, quando é preciso ser imperativo e disciplinado, eu sou
Sente a responsabilidade de não cometer com o Francisco os mesmos erros que cometeram com o Ricardo?
Não penso muito nisso, porque para mim essas coisas estão completamente resolvidas. Só praticamos os mesmos erros se não estamos resolvidos e ainda machucados ou traumatizados. Felizmente, tive a oportunidade de resolver essas coisas todas.
Ajo com o Francisco de uma forma muito natural. A única coisa que eu e a minha mulher nos limitamos a fazer com ele é transmitir-lhe os nossos princípios, valores, educação e dar-lhe todo o amor do mundo. Evidentemente que o amor não tem de ser uma coisa permissiva, permitir que a criança faça o que lhe dá na gana só porque sim, quando é preciso ser imperativo e disciplinado, eu sou.
Vou cometer outros erros, esses não, mas vou cometer outros porque as crianças não vêm com manual de instruções. O Francisco é outro ser, o que funciona com um pode não funcionar com a Carolina.
Enquanto pai sente uma preocupação acrescida quando vê o mundo a passar por tantas transformações?
Há alturas em que é preocupante, mas acho que se nós, pais, munirmos os nossos filhos e como lhe dizia, se lhe dermos princípios e valores – como a tolerância, o espírito de fraternidade – e sobretudo o respeito, isto é, saber ver o outro, ver o que está diante de si… É darmos a capacidade de resistência, resiliência, de perceberem que a vida não é só cor de rosa, tem múltiplas cores.
Hoje há esse problema de criarmos os filhos e dizermos que não há medo. Não! Isso há, claro que há, e tens de aprender a enfrentar todas essas coisas, faz parte do crescimento e da vida. Queremos que ele deite cá para fora um coração bom, honesto, bondoso e generoso. Acho que não há necessidade de ter medo, há sim a necessidade de ter cautela.