Desde o dia 7 de outubro que os olhos do mundo estão postos em Israel e em Gaza. O reacender do conflito israelo-palestiniano, após a vaga de ataques do Hamas e a consequente retaliação das forças do Estado hebraico, cumpre agora o seu primeiro mês e prevê-se longo.
O Notícias ao Minuto falou com o professor e ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes, que não vê fim à vista a este agudizar da tensão, condenando a desproporcionalidade da resposta de Israel e comparando ainda as diferenças da opinião pública entre os ataques da Rússia à Ucrânia e os ataques de Israel a Gaza.
A guerra no Médio Oriente completa o primeiro mês e Netanyahu já avisou que será longa. O que perspetiva para os próximos meses?
Há uma coisa que parece mais ou menos certa: vamos ter a intervenção de longe mais longa nesses conflitos. Houve uma em 2014 e eu prevejo que esta seja muito mais longa. Primeiro, pelo efeito das declarações muito claras que foram feitas pelos responsáveis israelitas e depois porque definiram como objetivo o que até agora nunca tinham feito que é a eliminação física do Hamas.
Começamos a ter momentos muito preocupantes sobre a forma como Israel está a conduzir as hostilidades
Israel apresenta resultados militares, mas à custa de muitas baixas humanas. Este ritmo pode manter-se? Que consequências podemos esperar?
Tivemos desde o início uma ambiguidade que eu considero perigosa. Há pessoas – e até Estados – que, perante os ataques horríveis de 7 de outubro, começaram a defender que quem tem o direito de exercer legítima defesa beneficia de uma espécie de imunidade do direito. Isso não é verdade e infelizmente começamos a ter momentos muito preocupantes sobre a forma como Israel está a conduzir as hostilidades. As forças armadas israelitas têm uma reputação muito forte, quer em relação à capacidade, quer também, tradicionalmente, quanto à forma como procuram interpretar e aplicar o direito internacional humanitário. Neste caso, o contexto operacional é muito pouco habitual. É essencialmente de malha urbana muito densa, de um lado os combatentes não se identificam como tal e não são forças tradicionalmente associadas a um conceito de exército. São, em si, um movimento que aprendeu ao longo dos anos a proteger-se misturando-se no meio da população.
Ora, a primeira ideia fundamental que é preciso afastar: o exercício da legítima defesa não dá nenhum direito a matar mais ou menos do que quem não está a exercer legítima defesa. Israel não pode invocar ter sido atacado para justificar a aplicação do princípio pelo qual os fins justificam os meios. Por estranho que nos possa parecer, nesta guerra – e digo guerra porque esta já foi declarada por Israel – têm tantos direitos e estão sujeitos a tantas obrigações os israelitas como os do Hamas. Israel não pode dizer ‘Eles são criminosos e eu posso eliminá-los nem que, para fazer isso, tenha de matar muitos civis’.
Os resultados iniciais que temos ao fim destes 30 dias são muito maus. Eu não duvido que Israel está a avançar muito fortemente do ponto de vista operacional e militar… Aliás: tenho a certeza de que Israel está a ganhar e que, do ponto de vista formal, vai ganhar este conflito. Ao mesmo tempo, também começo a ter a certeza à luz daquilo que antecede a intervenção militar propriamente dita, pensando por exemplo, na declaração de cerco a Gaza, ou na ordem de dizer à população ‘desapareçam daqui e vão para sul”. Qual é a questão que aqui se coloca? Discutimos sabiamente os impactos dos bombardeamentos da Rússia às infraestruturas críticas. A cada central elétrica que se destruía dizia-se que eram crimes de guerra… Ao mesmo tempo, quando vemos Israel a dizer ‘não vão ter nem água, nem luz, nem combustível, nem medicamentos’, ouviu-se o silêncio. Eu tenho vindo a insistir… o que fazemos hoje pagá-lo-emos amanhã.
Além disto, quando vemos um alto responsável israelita a dizer que, em geral, os que vivem em Gaza – nem eram os do Hamas-, eram bestas humanas ou sub-humanos, e que, portanto, vão ter o tratamento equivalente… Isto é muito preocupante. Quando começámos a ver a campanha de bombardeamentos, fomos percebendo que regras absolutamente fundamentais como a proporcionalidade, como a distinção, a necessidade militar… tenho sérias dúvidas de que tenham sido respeitadas. Israel diz sempre que pode provar que disparou contra um objetivo militar, como aconteceu agora no campo de refugiados de Jabalia. Mas quando, para matar uma chefia militar do Hamas, se destroem 20 edifícios, a pergunta que fica é: respeitou o principio da proporcionalidade? Parece-me evidente que não. Eu não sou treinador de Israel para dizer como fazer tendo em conta a malha urbana, mas temos de dizer o que não pode fazer. Quando já estamos para cima de 8 mil mortos civis e ⅔ são crianças… há alguma coisa a correr muito muito mal nesta operação.
Se for a Rússia o mau, vemos crimes por todo o lado, se for Israel, temos tendência a justificar e achar que não há crime
Como é que se justifica a diferença nas reações à guerra na Ucrânia e à guerra em Gaza?
Eu acho que é fácil de explicar… Recordo-me sempre de que, quatro dias depois de começar a agressão russa, tínhamos o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, a fazer uma declaração sobre a existência de crimes. Nós vivemos num mundo cada vez mais polarizado, em que cada vez mais é nós ou eles, e fomos nós, mundo, que fomos criando, ao longo destes últimos anos, aquela oposição entre o ocidente alargado – expressão que detesto- e o sul global. Fomos nós que fomos destruindo o sistema multilateral das Nações Unidas. Fomos nós que atacámos o Conselho de Segurança e dizíamos que era irrelevante… Fomos semeando, ao longo das últimas duas décadas, sementes de discórdia que vieram dar neste resultado. Se for a Rússia o mau, vemos crimes por todo o lado, se for Israel, temos tendência a justificar e achar que não há crime. Se for uma criança a morrer aqui [em Gaza], não há problema, se morrer na Ucrânia, temos os jornais a abrir com isso. Eu nunca me lembro de ver tantos crimes de guerra cometidos – ou pelo menos invocados – como na guerra da Ucrânia. Agora, se formos a ver, daqui a duas ou três semanas, já terá havido mais mortes na população civil em Gaza do que na guerra da Ucrânia até agora.
Se Israel continuar a atacar civis, acredita que o apoio de países ocidentais que tem recebido pode esmorecer ou mesmo desaparecer?
Sinceramente, não creio. E, infelizmente, porque acho que Israel tem todo o direito de existir, mas não cumpre com as suas obrigações internacionais para com os palestinianos. Acho que as Nações Unidas, ao contrário do que Israel diz, estão a ser enxovalhadas por Israel há muito tempo. Este episódio com o secretário-geral António Guterres não foi mais nada do que uma cenografia militante que, aliás, acabou na sessão do Conselho de Segurança com o embaixador de Israel a fazer aquele exercício – que eu acho que é infame, de utilizar a estrela de David. Com isso insultou as vítimas do Holocausto, do 7 de outubro, e insulta as vítimas civis na Faixa de Gaza.
Acho que o Hamas queria trazer a questão palestiniana outra vez para a ordem do dia – porque estávamos esquecidos e muito confortáveis. Se formos ver o território ínfimo que os palestinianos têm hoje em Gaza, parece uma renda, se formos ver a perseguição na Cisjordânia, os assassinatos, as expulsões, acho que o que está aqui em causa é a ideia fundamental que passa pelo seguinte: se Israel acredita que matando todos os elementos do Hamas conquista a paz, eu penso que estão muito enganados. A violência nunca construiu paz. Agora… há outra questão. Os Estados Unidos já tinham deixado para trás há muito tempo a ideia dos dois Estados. Joe Biden, aliás, é o primeiro presidente dos últimos 30 anos que no início do seu mandato reafirma o princípio ‘uma Palestina, dois Estados’. E agora foi obrigado, pelo andamento da carruagem, a reafirmar isto.
E temos outro problema, neste momento as opiniões públicas estão em carne viva e, muito infelizmente, há reações antissemitas, brutais, às vezes, um pouco por todo o mundo. E isso, voltarmos a um período de antissemitismo, é uma tragédia.
António Guterres foi absolutamente exemplar [no discurso](…) Não foi Guterres que causou um conflito com Israel. Israel está em conflito com as Nações Unidas há décadas
Sobre esse item, ia perguntar-lhe se acha que Portugal corre algum risco tendo em conta a evolução do extremismo, seja ele antissemita ou islamofóbico?
Eu acho que sim. Não creio que sejamos genericamente muito diferentes de outras comunidades. Não temos uma tradição recente especialmente virulenta neste domínio, mas o que aconteceu por exemplo nos muros da sinagoga no Porto e outras coisas não tenho dúvidas de que podem vir a multiplicar-se nos dois sentidos. Por exemplo, o assassinato de uma criança, nos EUA, que foi morta à facada pelo senhorio, por ser muçulmano… É terrível. Como é que um velho consegue sentir tanto ódio por uma criança. Acho que vivemos numa sociedade altamente polarizada, onde o ódio se propaga nas redes sociais.
Voltando à polémica que se levantou em torno das declarações de António Guterres, é possível uma posição neutra num conflito tão complexo e já tão longo? É possível uma posição em que a defesa dos civis não legitime a violência de uma ou outra parte?
Acho que ele foi absolutamente exemplar [no discurso]. É mentira o contexto com que foi apresentada a intervenção de Guterres. Para se poder atacar Guterres começou-se pelo vácuo e só depois se passou para a condenação dos ataques – só que isso é uma descontextualização mentirosa. Eu li atentamente o discurso e ele começa por lançar um ataque forte e muito condenatório a tudo o que o Hamas fez, depois é que disse que esses ataques não vêm do vácuo, e que nada disto justifica, e repetiu uma segunda condenação. Mas disse ainda que não se pode confundir os palestinianos com o Hamas.
Aquele ataque foi evidentemente oportunista. Israel quis transmitir que era a primeira vez que se tinha de zangar a sério com as Nações Unidas. É falso. Há menos de um ano, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma resolução em que pediu ao Tribunal Internacional de Justiça para adotar um parecer consultivo sobre a ocupação dos territórios palestinianos, esta foi insultada, bem como o tribunal. Mas por este embaixador e por Netanyahu. Portanto, e ao contrário do que fui lendo, não foi António Guterres que causou um conflito com Israel. Israel está em conflito com as Nações Unidas há décadas, mas agravou e tornou violentas essas diferenças desde que existe aquilo que eu considero o governo mais extremista de Israel desde a independência.
Corremos o risco de estarmos perante um daqueles conflitos em que vamos nós morrer, vão os nossos filhos, e a guerra continua
Sabendo da complexidade do conflito, na sua ótica, qual a solução para esta guerra?
Corremos o risco de estarmos perante um daqueles conflitos em que vamos nós morrer, vão os nossos filhos, e a guerra continua. Para terminar, seria preciso, de uma vez por todas, uma intervenção internacional forte. Seria preciso os EUA decidirem que este conflito tinha de terminar com um respeito mínimo pelos direitos dos palestinianos. Nos EUA os setores pró-judaicos, ou pró-Israel são fortíssimos – o que não tem mal nenhum. O problema é que, sendo fortíssimos, estão normalmente associados às expressões mais radicais da afirmação de Israel. E, além de serem pró-Israel, são contra palestinianos e contra a ideia de dois Estados na Palestina. E quando é assim, vejo com dificuldade que qualquer poder político nos EUA vá afrontar quem, por exemplo, está fortissimamente representado no Congresso.
A segunda condição é que quem estiver no poder em Israel tenha disponibilidade para saber que, para ter paz, vai perder coisas, território, enfrentar o risco de uma guerra civil com os colonos… e o problema é que a sociedade civil israelita se radicalizou drasticamente. Sobretudo o grupo que se foi constituindo e capturando território aos palestinianos, e que os odeia. Basta recordamo-nos do que aconteceu quando Ariel Sharon decidiu sair de Gaza. Terão sido tirados de lá uns 8 mil israelitas e só não houve uma guerra civil porque não calhou. Imagine agora o que seria pensar-se em devolver aquela porcaria de território, perdoem-me a expressão, que não é quase nada, a que nós chamamos a Cisjordânia. Portanto, se juntarmos a isso que Donald Trump reconheceu Jerusalém como a capital de Israel, e decidiram reconhecer, em principio, que não vai contra o direito internacional a construção de colonatos, como é que se vai fazer?
E por isso é que se eu acredito profundamente no direito de autodeterminação dos palestinianos, acho que é totalmente irrealista hoje imaginar que em algum momento Israel vai autorizar que se estabeleça na Palestina um qualquer território que não seja seu. Acho até a atenção para o facto de Netanyahu já ter ameaçado, por várias vezes, anexar a Cisjordânia. Já anexou os Montes Golã, Gaza nem preciso de comentar…
E atenção que Israel foi atacado desde o seu primeiro dia de independência, isto é importante que se diga,. Foi atacado em 1947, 1948, depois em 1967, em 1973… Mas a História não serve só para um lado. Se tudo isto é verdade, não são menos verdade as ocupações, os colonatos, a captura de território, a perseguição…
Apesar das garantias de inúmeros países de que as ajudas a Kyiv não vão cessar, acha que é possível que esmoreçam a longo prazo, agora que há duas guerras para ‘alimentar’?
Acho que não. A desproporção de meios funciona a favor de Israel e não do Hamas, enquanto na Ucrânia temos uma situação completamente contrária. O problema da Ucrânia também não me parece que venha a ser apoio militar. O problema da Ucrânia é já ninguém ligar àquilo. Embora deva dizer-lhe, a Ucrânia ter saído das primeiras páginas dos jornais foi uma sorte. Antes de 7 de outubro as notícias que saíam sobre eram de esmorecimento dos apoios e divisões, uma contraofensiva a correr muito mal… e hoje em dia este silêncio tremendo pode ter ajudado Kyiv a preparar-se.
O conflito está praticamente estagnado, disso já não há dúvidas. Isto é horrível de se dizer, mas para a Ucrânia, a morrer, morrem aqueles lá no leste e no sul. O que é se se nota? A Ucrânia fala do leste como o ‘seu território’ e a Rússia fala como ‘as suas pessoas’…