No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho
Carlos Drummond de Andrade
Atravessada de ondulações que recordam a nossa epopeia marítima, polvilhada de buracos que fazem que não esqueçamos, enquanto peões, os outros buracos em que se esgarçam os pneus dos carros, tão mal cuidada que tem de ser o próprio Chefe do Estado a ir ajeitar as pedrinhas soltas em frente do Palácio de Belém, a calçada portuguesa é um instrumento mortífero, verdadeira bomba aleatória à espera dos peões mais incautos.
Falo de experiência própria. Uma pedrinha irregularmente colocada, num capricho de artista, a enriquecer em volume e saliência um passeio da nossa capital, deu aos meus passos uma rasteira, que me levou ao hospital e ao uso subsequente de uma vistosa tipóia no braço fraturado, adereço que infelizmente em nada aumenta o meu encanto, posto que em nada melhora a minha aparência.
Reconheço aos edis de Lisboa a justiça relativa com que procedem no que toca à distribuição destes buracos armadilhados entre as vias para automóveis e os carreiros para peões. Os peões, agora também à mercê das trotinetas, para as quais não há lei nem senhor, continuam a sofrer há séculos estes riscos das calçadas sempre por calcetar, mas os automobilistas não se ficam a rir, com os buracos que lhes são oferecidos no meio das nossas ruas.
Desde o debate na Casa dos Vinte e Quatro sobre os obstáculos e rasteiras postos pela calçada portuguesa aos populares que acorreram aos paços aos gritos de “matom o Meestre” (uma fake new que deu jeito à História, mas uns trambolhões que a desdouraram), desde esse momento, em 1383, que os sucessivos edis de Lisboa se obstinam em manter essa mesma calçada, sem renovar o seu calcetamento. O tremor de terra de 1755 constituiu uma oportunidade única para a abolição das calçadas, mas tal não foi possível devido à teimosia do marquês de Pombal, que dizia, numa tirada à Lampedusa: “Se vou mudar todas as casas e todas as ruas, deixo-lhes pelo menos as calçadas”.
Mais tarde, por alturas do miguelismo, tivemos o acidente de Jacinto Galião, o avô do Jacinto de Tormes, que, descendo a Travessa da Trabuqueta, escorregou e veio despenhar-se sobre as pedras do lajedo, antes de ser apanhado e levantado, risonhamente, pela “força fácil” do Senhor D. Miguel. Se é certo que foi a derrota e o exílio do seu amado monarca que levou Jacinto Galião a fechar a sua casa de Lisboa para se exilar em França, não teve menos culpa nesse exílio o estado vergonhoso do lajedo da Travessa da Trabuqueta, que levou a uma salvífica intervenção de um mais antigo Chefe de Estado.
O fado, essa manifestação suprema da decadência da Raça, como foi a seu tempo denunciado pelos ideólogos do Estado Novo, veio introduzir mais uma componente masoquista na relação dos lisboetas com as suas calçadas. Ora atentem nestes versos: “se o meu amor chegar cedinho/ eu beijo as pedras do chão/ que ele pisar no caminho”. Não apenas este fado transmite uma mensagem ideológica de submissão incondicional da mulher aos caprichos horários do seu companheiro, como a obriga (humilhação máxima!) a rojar-se no chão e a beijar essas mesmas pedras da calçada, cruéis e sempre prontas para nos desgraçar.
Ora eu, do mesmo modo que Drummond de Andrade lá pelas calçadas brasileiras encontrou no seu caminho uma pedra, também eu vim tropeçar numa pedra mais alevantada de uma calçada lisboeta e assim me estatelei ao comprido, sem ganhar depois o auxílio carinhoso de nenhum monarca, mas sim a solidariedade atenta de vários anónimos transeuntes, a quem aqui venho agradecer. E esta foi a pedra, mais uma pedra, que encontrei no meio do caminho.
NOTA: Todas as referências “históricas” deste texto são obviamente fictícias, com excepção da minha própria queda, que, essa, não passará à História.
Luís Filipe Castro Mendes
Diplomata e escritor
Tem de iniciar a sessão para publicar um comentário.