A mulher ocupava de canto a canto a janela da casa de esquina. Era um poiso de vista sobre a rua, onde os passeios de cimento desfeavam os transeuntes. Ela à janela mirava-os o dia inteiro.
Talvez fosse o pódio do terceiro andar ou o corpo dela preencher a janela – algo que lhe dava algum enigma. Ocorria-me que ela era mais personagem do que pessoa. Não sabia ainda até que ponto.
Velha e só, como velhas e só são muitas mulheres portuguesas. A solidão punha-a à janela e atrapalhava-lhe a língua. Custava-lhe falar com as pessoas do café, que pediam cheirinhos às nove da manhã e falavam português-biscate e português-expediente.
Mas um dia encontrei-a mais desenvolta. Pusemo-nos os dois ao balcão. “De perto, não pareces tão enfezado”, disse-me. “Vejo-te desde pequeno mas nunca te falei da minha irmã.”
Via-me desde pequeno mas eu não sabia que tinha uma irmã, confirmei. Para mais, irmã gémea. “Gémea igual”, explicou ela. “Nascemos as duas da mesma mãe.” E continuaria pleonástica, com mais iguais que são idênticos, se eu não lhe tivesse dito que nunca a vira com a irmã.
Claro que nunca: a mana estava havia muitos anos no hospital. E ela só saía de casa para as compras, o café e as visitas. Nas manhãs de quarta-feira, pegava o autocarro e visitava a irmã gémea. “Ainda hoje lhe sinto as dores. Sabes o que dizem. Irmãs assim são muito próximas, nada nos afasta.” Uma vez por semana, era o reencontro, era o regalo.
Bebia o café com demasiado açúcar. A mistela parecia uma fórmula química ingerida de uma vez, a ver se lhe conservava os órgãos e o espírito. Durante uns minutos, fez-se o silêncio do café deslizante.
Então explicou-me que atravessava os serviços do hospital, metia pelas especialidades e ia direita à ala museológica pelo atalho que ela lá sabia. Deixavam-na arrastar uma cadeira para se sentar confortavelmente à frente da vitrina. “Vejo a minha irmã no seu frasquinho, e vem-me uma ternura, um amor. Igual a mim, igualzinha. Mas ela embrulhadinha no formol.”
Embebida em formol ficou a irmã, que morreu em bebé e foi doada pelos pais ao hospital. Hoje, ninguém diria que as duas foram gémeas, mas durante as visitas – garante-me – conta tudo à irmã, desabafa muito, esvazia-se.
“É verdade que também tenho as minhas alegrias. A minha irmã sempre me ouviu os desabafos e até hoje nunca nos desentendemos”, disse a mulher. Depois saiu. No ar ficou um cheiro doce a pastilha elástica de mentol ou a corredor de hospital.
O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA
*Escritor