• Abril 18, 2025
Logo_Site_01

Um cônsul no seu labirinto

Fui cônsul-geral de Portugal no Rio de Janeiro cinco anos, entre 1998 e 2003. A razão por que vivi com tanta intensidade a minha experiência carioca deveu-se muito aos meus amigos brasileiros e à felicidade de os ter encontrado.

Viver temporariamente num lugar, com suficiente atenção e disponibilidade para um necessário despaisamento, se não nos liberta totalmente dos estereótipos e clichés que fomos acumulando pela vida fora, permite pelo menos pô-los em causa, virá-los de pernas para o ar e fazer a limpeza da nossa perceção e dos nossos preconceitos.

O brasileiro é o português à solta, dizia Agostinho da Silva. Por não querer reduzir a dimensão do brasileiro à matriz portuguesa, diria que é antes o português que se solta, ou se sente mais solto, no Brasil. Os pobres camponeses de Portugal que buscavam no Brasil melhor vida e maior reconhecimento encontravam um espaço mais livre, menos constrangedor nessas terras, apesar dos empregos duros e da troça dos locais aos Manéis e Joaquins, identificados como toscos e boçais até ao fim da vida.

Tive a sorte de estar presente, logo após a minha chegada ao Rio, em casa de gente amiga, num encontro preparado por José Aparecido para receber Mário Soares. Conheci nesse jantar alguns dos amigos que me fizeram, a mim e a minha mulher, cariocas de gema. Lembro-me que Millor Fernandes, ao ouvir falar de mim como poeta, exigiu como prova um livro meu. Não sei porquê, eu até levava um exemplar comigo. O Millor foi sentar-se no chão, a alguma distância de nós, e leu com atenção algumas páginas. Quando me devolveu o livro, senti que tinha sido aprovado.

Os desenhos em que Millor Fernandes e Chico Caruso nos profetizavam, a mim e a minha mulher, um destino carioca, se não se verificaram na vida real, ficaram gravados nos nossos mais fundos afetos.

A casa onde fomos morar era o palácio construído nos finais dos Anos 50 do século passado para ser a residência do embaixador de Portugal, quando a capital do Brasil estava no Rio (“e sempre estará” foi a garantia que o ministro brasileiro de Exteriores deu então à nossa diplomacia). Quando a capital mudou para Brasília, ficou aquele palácio sem destino manifesto e a nova residência da embaixada em Brasília ainda hoje por construir.

Não fui o primeiro cônsul a utilizar aquelas enormes instalações para atividades culturais. Tive condições, vontade e apoio para as desenvolver de modo sistemático e regular, organizando concertos, sessões de poesia, lançamentos de livros, conferências e tertúlias, até rodagem de novelas da Globo, ganhando os cariocas para a frequentação assídua daquele espaço. Paralelamente, promovi naquele mesmo espaço encontros e jantares de confraternização com a comunidade portuguesa do Rio de Janeiro. O apoio constante e ativa participação e empenhamento de minha mulher estiveram na raiz de tudo o que fizemos e de tanto que recebemos.

O que não se pode escrever nesta prosa de relatório convencional (e contudo verdadeiro!) é o forte eco de felicidade que acompanhava toda esta vivência e a repercutia numa intensidade leve, que chegava para mudar os nossos fundamentos. Os desenhos em que Millor Fernandes e Chico Caruso nos profetizavam, a mim e a minha mulher, um destino carioca, se não se verificaram na vida real, ficaram gravados nos nossos mais fundos afetos.

Num passeio anónimo pelo centro do Rio encontrei um dia dois portugueses que meteram conversa comigo. Estes portugueses viviam há muitos anos no Brasil e aconselharam-me vivamente:

– Patrício, perca esse sotaque português! Fale brasileiro, como nós falamos. Verá que a sua vida se tornará mais fácil.

Agradeci e não lhes expliquei que o meu estatuto me dispensava, para a minha aceitação plena pelos brasileiros, dessa prova fundamental, que na canção de Noel Rosa se dizia “já passou de português”. O português que era, afinal, senão a larva ou o embrião dessa realidade superior que era o brasileiro?

 

Luís Castro Mendes

Diplomata e escritor

 

Anuncie aqiu
    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

    Logo branco

    Ultimas Noticias

    Categorias

    Logo branco
    Comunidade Lusa é um site de notícias onde pode encontrar as mais recentes informações sobre a nossa comunidade portuguesa no mundo e acima de tudo na Suíça. Aqui encontra também novidades sobre eventos culturais e temas como: desporto, mulher, opinião e publireportagens muito interessantes sobre empresas na Suíça.
    © Comunidade Lusa 2025. Todos direitos reservados.
    WP2Social Auto Publish Powered By : XYZScripts.com