Sobre o estado da esquerda

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No Chile, os partidos de direita acabam de alcançar a maioria para redigir a nova constituição do país, tendo o Partido Republicano (extrema direita) conquistado o direito de veto no Conselho Constitucional; as eleições para a composição do referido Conselho foram realizadas na sequência da rejeição, em setembro do ano passado, da proposta de revisão constitucional apresentada pelo governo de Gabriel Boric, considerada uma das mais progressistas do mundo.

Esta notícia tem tudo a ver com o atual estado da esquerda em todo o mundo. Como tenho insistido em textos recentes, as forças progressistas continuam perplexas até hoje, após a queda do Muro de Berlim, sem saberem bem como reagir às mudanças impostas pelo neoliberalismo em todos os campos e não apenas no terreno económico.

Resumidamente, a esquerda de matriz marxista-leninista, além de ser incapaz, de um modo geral, de avaliar criticamente a tentativa de edificação do chamado “socialismo real”, tem uma notória dificuldade em lidar com os novos fenómenos trazidos pelo neoliberalismo, como, só para citar esses, a tecnofinanceirização da economia, a globalização, a digitalização, a atomização social, o acirramento do individualismo, a lógica do todos contra todos; a social democracia (também chamada socialismo democrático) acabou, tendo sido cooptada pelo neoliberalismo e pelo atlantismo, sem esquecer os crescentes casos de corrupção nesse campo político-ideológico, durante muito tempo considerado como que impoluto e exemplar; a “nova esquerda”, que não resisto a apelidar de “esquerda neoliberal”, ao mesmo tempo que diz combater os efeitos sociais do capitalismo contemporâneo, parece ceder ao encanto de certos discursos e estratégias tipicamente neoliberais, como os identitarismos (não confundir com a necessidade de resgate das identidades historicamente discriminadas) e a contínua fragmentação das lutas sociais, cada vez mais atomizadas, o moralismo e, acima de tudo, o vanguardismo.

Tudo isso — vou dizê-lo — pode conduzir-nos a um novo tipo de fascismo. De facto, que nome dar a um cenário caracterizado por uma ideologia e um pensamento únicos, um modelo económico único, uma moral única, uma escola única, um critério de sucesso único, sem esquecer, claro, uma ordem mundial única?

O risco da universalização desse cenário fascista não deve ser apenas avaliado pelo crescimento da extrema direita no mundo. A verdade, insisto, é que esse crescimento é uma das consequências do neoliberalismo e dos seus processos e mecanismos. Por isso, a alternativa a essa possibilidade real não é a “democracia liberal”, pelo menos se ela for entendida unicamente como “democracia política” ou “democracia eleitoral”, até porque sabemos que, em caso de necessidade, a burguesia liberal não hesita em apoiar ou apoiar-se na extrema direita. Para evitar dúvidas, esclareço que, sim, precisamos dessas manifestações da democracia, mas também precisamos de direitos sociais, culturais e económicos. Cabe às forças de esquerda lutar pela conquista e alargamento constantes desses direitos, com lucidez, coerência e, last but not the least, sem qualquer tentação vanguardista, tipicamente pequeno-burguesa.
A lucidez implica, obviamente, estudar e analisar corretamente a realidade contemporânea, em todos os seus aspetos; a coerência exige uma demarcação clara e inequívoca, em relação a regimes e práticas equivocadas (não democráticas) de “esquerda” que ainda persistem em vários países, sem ser cooptado pela “democracia imperialista” e seletiva (aquela que se arroga o direito de implantar a democracia à força da bala, dos canhões e dos drones em países escolhidos a dedo e só nesses); e, por fim, a recusa de qualquer tentação vanguardista exige a humildade de entender que as mudanças sociais levam tempo e, sobretudo, não podem ser impostas a partir de cima, implicando um conhecimento e uma convivência com as classes e grupos sociais desfavorecidos e discriminados.
Ou seja: a esquerda precisa de reinventar-se (com realismo), para que fenómenos como os que acabam de ocorrer no Chile (e que poderão replicar-se em outras paragens) não se repitam.

 

João Melo

Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21

 

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