Politicamente pop

Vivemos no tempo da polémica. Das polémicas. Tudo pode ser rotulado de acontecimento polémico: um cenário de tensão política, o penalty que ficou por marcar num jogo de futebol ou a nudez de alguém numa fotografia, sobretudo se for uma mulher… Os exemplos são abstractos, mas nenhum deles é irrealista. Bem pelo contrário: sabemos que quando entramos na aceleração polémica dos factos, em boa verdade já não há factos, apenas conta essa aceleração e a sua monótona reprodução, tratada como acréscimo incontestável de verdade.

A histeria polémica ignora o devir histórico. Não se interessa pela inscrição dos factos num determinado contexto, limitando-se a celebrar os momentos efémeros, fechados sobre si próprios, em que somos convidados a experimentar o mundo como palco de uma agitação exuberante, para alguns divertida ou mesmo feliz. Gasta essa agitação (porque as suas variações têm limites), passa-se à frente. Entenda-se: inventa-se outra polémica. No limite, o ideal democrático surge reduzido a uma colagem infinita de polémicas.

Exemplo? Talvez o leitor se recorde das convulsões mediáticas – da polémica, precisamente – em torno do teledisco da canção American Life, de Madonna, já lá vão vinte anos. Dirigido por Jonas Akerlund, o teledisco surgiu a par do respectivo single, a 24 de março de 2003, antecipando o lançamento do álbum homónimo (cerca de um mês mais tarde, a 21 de abril).

Encenando uma passagem de modelos que vai integrando uma performance de violentas cenas de guerra (em paralelo com algumas imagens documentais), o teledisco emanava de um discurso pacifista que Madonna sempre assumira publicamente, visando em particular a possibilidade de George W. Bush mobilizar o poder militar dos EUA para invadir o Iraque. Que se passou, então? A invasão do Iraque aconteceu mesmo… e Madonna retirou o teledisco de circulação.

Qual foi a polémica? Prevaleceu a ideia (?) segundo a qual Madonna se lançara numa manobra demagógica, tirando partido da conjuntura geo-política para vender o seu álbum. Poucos se interessaram pela cronologia dos factos. O lançamento do teledisco, filmado em fevereiro, já estava agendado para a referida data – e a não ser que admitamos a possibilidade de Madonna controlar um sistema de informações mais sofisticado que a própria CIA, não parece verosímil que ela, ou alguém do seu staff, tivesse sabido que a invasão do Iraque começaria a 20 de março…

Aliás, a concepção e produção do teledisco por Madonna e Akerlund começara alguns meses antes, em novembro de 2002. O projecto envolvia a criação de um panfleto anti-guerra, certamente ligado à discussão americana (e global) da legitimidade moral e pertinência política de uma possível invasão. A retirada do teledisco, a 1 de abril, foi explicada num comunicado que muitos “analistas” preferiram minimizar, limitando-se a deduzir que Madonna tinha “falhado” o seu golpe publicitário. Escreveu ela: “Decidi não difundir o meu vídeo. Foi filmado antes da guerra começar e não creio que seja apropriado emiti-lo neste momento. Devido ao volátil estado do mundo, por sensibilidade e respeito pelas forças armadas, que apoio e por quem rezo, não quero correr o risco de ofender quem quer que seja que possa interpretar erradamente o significado deste vídeo.”

O teledisco de American Life regressou à actualidade, reafirmando a singularidade artística de Madonna.

Estava fechada a polémica. Não admira que, vinte anos mais tarde, “ninguém” tenha dado importância, ou apenas algum reconhecimento noticioso, ao reaparecimento do teledisco de American Life em imaculada versão restaurada (4K), sempre com chancela da respectiva editora (Warner Bros.). Quando? Há pouco mais de uma semana, no dia 26 de abril. Onde? YouTube.

Nem sequer houve qualquer agitação (polémica, porque não?) em torno da hipótese de American Life persistir como um objecto de perturbante actualidade simbólica. Por três razões, já agora: primeiro, porque nele se expõe o espaço da política contemporânea como indissociável de muitas matrizes espectaculares, sobretudo televisivas; depois, porque a sua estrutura discute o modo como as componentes realistas das imagens podem ser pervertidas por lógicas de puro entertainment; finalmente, porque Madonna reafirma a possibilidade de o gesto artístico integrar uma discussão pedagógica das formas de representação audiovisual do mundo à nossa volta. Em termos simples: com ou sem polémica, American Life é uma das obras-primas da cultura pop do século XXI.

// João Lopes – Jornalista

Deixar uma resposta

O seu endereço de correio electrónico não será publicado. Os campos obrigatórios estão assinalados com *

WP2Social Auto Publish Powered By : XYZScripts.com