Se há palavra que caiu na bolsa de valores da linguagem nas últimas décadas é “narrativa”, usada e abusada por todos os grupos políticos mas, no Brasil, sequestrada sobretudo pela ala mais burra da extrema direita.
Para ela, a necessidade de vacinação contra a covid-19 era uma “narrativa” globalista patrocinada pelos grandes grupos de comunicação social mancomunados com a OMS, a conotação do regime nazi com a direita uma “narrativa” difundida por historiadores esquerdistas e a teoria de que a Terra é redonda uma “narrativa” inventada por perigosos comunistas, como Galileu.
E, já este ano, as imagens da invasão à sede dos três poderes no último 8 de janeiro uma “narrativa” fabricada pelas próprias vítimas, o presidente Lula da Silva à cabeça, para incriminar bolsonaristas.
Por isso, causa incómodo ouvir “narrativa” da boca do próprio Lula.
No contexto de um encontro em Brasília com todos os demais líderes sul-americanos, à exceção do Peru, cuja presidente, Dina Boluarte, está impossibilitada de comparecer por questões constitucionais, o chefe de estado do Brasil fez de Alberto Fernández (Argentina), Luís Arce (Bolívia), Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Guillermo Lasso (Equador), Irfaan Ali (Guiana), Mario Benítez (Paraguai), Chan Santokhi (Suriname) e Lacalle Pou (Uruguai) figuras secundárias para entregar a Nicolás Maduro (Venezuela) o papel de rock star.
Não está em causa a recuperação das relações com um vizinho tão relevante, depois de quatro anos de ostracismo sob Bolsonaro, que, sem senso do ridículo, chegou a reconhecer Juan Guaidó como presidente em 2019.
E que atire a primeira pedra quem não tiver ligações com ditaduras ou regimes autoritários: a China é o principal cliente da maioria dos países do planeta, incluindo dos EUA, que, por sua vez, são aliados da Arábia Saudita e financiadores do Egito mas sufocam a Venezuela em nome dos direitos humanos que sauditas e egípcios ignoram.
No entanto, afirmar que “a Venezuela é alvo de narrativas de antidemocracia e autoritarismo”, como Lula afirmou, soa a conversa de terraplanista de esquerda.
Como listaram especialistas, o país de Maduro (e Hugo Chávez) tem 15 pontos em 100 no ranking da democracia da Freedom House, pouco à frente do Irão (12) e com menos de um quarto da pontuação do segundo pior sul-americano, a Bolívia, com 66 pontos.
Lembrou Guga Chacra, colunista de O Globo, que no ranking Repórteres Sem Fronteiras, a Venezuela está no 159.º lugar, que sete milhões de venezuelanos deixaram o país diante da crise económica segundo o Human Rights Watch, parte deles ainda antes das sanções de Washington, e que, segundo a Amnistia Internacional, Maduro usa “força excessiva e repressão contra manifestantes incluindo aqueles que exigem direito a água”.
Em missão de investigação, a ONU detectou violações dos direitos humanos, crimes de lesa-humanidade, repressão aos media e aos sindicatos.
Sob Maduro, aplaudido por tantos esquerdistas, os direitos LGBT são uma miragem e a exploração de petróleo não tem vestígio de preocupação ambiental.
Ou seja, o regime de Maduro está podre. E Lula, que levou puxão de orelhas público de Pou, o presidente de centro-direita uruguaio, e Boric, o presidente de centro-esquerda chileno, e irritou o eleitorado moderado brasileiro que o elegeu, se não se corrigir corre o risco de apodrecer também.
João Almeida Moreira
Jornalista, correspondente em São Paulo
