Literatura em tempos de capitalismo tecnofinanceiro-pop

João Melo

Vivemos cada vez mais tempos estranhos. Nas últimas quatro décadas, a economia transformou-se em finanças, o capitalismo “tecnificou-se” de vez, separando irremediavelmente humanidade e natureza, a sociedade atomizou-se, a comunicação, ao invés de construir pontes, criou redutos, o trabalho precarizou-se, perdendo prestígio e sendo substituído pela ilusão empreendedora, radicalmente individualista e potencialmente alienada.

Tudo isso em nome da liberdade individual absoluta e da obsessão do lucro infinito. Mas poucos se dão conta de que essa liberdade abstratamente absoluta é apenas uma miragem, estando a conduzir-nos para um cenário fatal em que o poder (económico e, portanto, político, militar, cultural, social e ideológico) está a concentrar-se num grupo cada vez mais reduzido de indivíduos (que continuam a agir em nome de nações, mas talvez isso também passe, regredindo nós, como previu Eco, para a Idade Média ou, acrescento eu, para o tempo das cavernas).

A liberdade individual e pretensamente absoluta significa luz verde para que os poderosos (os mais fortes) se tornem cada vez mais poderosos. Os “empreendedores” e os “influencers”, por baixo do brilho do seu auto-exibicionismo efetivo, mas coletivamente inútil, são os novos assalariados dos verdadeiros donos do mundo, cuja face visível são as big techs. É a uberização não só do trabalho, mas de toda a economia e, quiçá, da própria vida. A dita “inteligência artificial” já chegou, para terminar essa grande operação de desumanização.

É o capitalismo, estúpidos. Será? Rebecca Henderson, autora de Repensar o Capitalismo para Salvar a Humanidade, acha que talvez não seja ou, pelo menos, que isso ainda pode ser mudado. Não sei se estaremos aqui para assistir à “redenção” do capitalismo ou, simplesmente, à destruição da nossa civilização.

A literatura não escapa a essa nova e perturbadora realidade. Tenho pensado muito nisso devido à quantidade de tempo que tenho gasto em conversas e debates sobre o que nós, escritores, podemos e devemos fazer para que as nossas obras possam simplesmente dar prazer a alguém ou — ambição particularmente legítima — fazê-lo pensar, mudar alguma coisa (uma crença ou perceção, uma visão, uma postura) e, quem sabe, tentar agir, individual ou coletivamente, em prol de algo novo, diferente e, sobretudo, melhor.
Ao que parece, os escritores não podem mais preocupar-se unicamente com a sua escrita. Para começar, têm de começar por pensar naquilo que deverão escrever e sobretudo em que perspetiva, para corresponder (e não apenas “interagir” ou mesmo — por que não? — questionar) ao espírito do tempo. Uma imposição particular é-nos feita: atender aos chiliques dos “leitores sensíveis”, cada vez mais temidos por certas editoras, pois podem afetar as vendas.

Os autores pertencentes a grupos sub-representados são aconselhados a escrever consoante as necessidades do atual capitalismo tecnofinanceiro-pop, travestido de “políticas de representatividade” em geral. Assim, e apenas para dar um exemplo, leitores ocidentais ou “ocidentalizados” esperam dos autores africanos que eles escrevam sobre temas como o racismo ou o feminismo exatamente da mesma maneira e de acordo com a perspetiva da sua cultura ou à qual estão subjugados, mesmo que se considerem solidários e se digam aliados dos membros das culturas periféricas e dominadas.
O aconselhamento que nos é feito chega ao ponto de ditar a que género devemos nós dedicar-nos. Romance é o que “está a bater”, dizem-nos. Por isso, não resisto a revelar a seguinte história: há dias, falando com um tradutor chinês interessado em traduzir alguma coisa minha, ele disse-me que prefere trabalhar com contos, pois os leitores chineses, a acreditar nele, “não têm disposição para ler grandes romances”. Em que ficamos? Escrever poesia, então, nem se fala.

Falta mencionar duas outras mudanças: a primeira é que, além de terem de vender os seus próprios livros (algo que, na realidade, a chamada literatura marginal sempre fez, mas hoje se tornou uma espécie de verdadeira “indústria caseira”), certos escritores têm por vezes de pagar para serem publicados; a segunda, mais perversa, é que os próprios autores, alguns deles convertidos ou convencidos de que se tratam de estrelas pop, estão a transformar-se em mercadoria (é vê-los, assim, a serem obrigados a fazer ensaios fotográficos para os jornais ou, então, caras e bocas nas redes sociais; se forem mulheres e jovens, terão de fazer poses mais ou menos insinuantes…).

Ou seja, nem a literatura escapa à tendência para a uberização e monetização da existência e dos corpos. O mais lamentável é quando isso é defendido com uma retórica dita “progressista” e até de “esquerda”.

 

 

João Melo
Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21

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