Há sensação de que está a alguma coisa para acontecer. Os polícias medem nas mãos os cassetetes e avançam. É como se estivesse prestes a começar uma caçada. Estão cada vez mais tensos. E começam a surgir mais polícias, vindos de todos os cantos da praça.
Quando são já mais de uma centena, os que estavam no centro da praça disparam a correr. À sua frente, o punhado de manifestantes para os cânticos e começa a fugir. A sua corrida instiga os polícias, que passam por mim num galope desenfreado. Os cassetetes em riste, que alguns metros à frente caem sobre as costas desprotegidas dos jovens. Vejo-os fugir em várias direções, perseguidos por agentes a pé, ao mesmo tempo que umas duas dezenas de motas, cada uma das quais com dois polícias em cima, se aproxima da praça.
Fujo também, evitando correr, com medo de ser confundida com um dos manifestantes e acabar como eles, espancada pelos polícias que agora já têm capacetes e, em alguns casos, máscaras negras a cobrir-lhes a face. Ando devagar, mas firmemente. Tão firmemente quanto me é possível, agora que as pernas me tremem e o coração se acelera.
À minha volta, nas esplanadas a vida segue. Bebem-se copos de final da tarde, petisca-se qualquer coisa nas brasseries. Não tenho sequer a coragem de olhar para trás. Não quero ver ao vivo as cenas de violência e repressão policial que quase todos os dias me aparecem nos vídeos do Instagram, mas que só agora presencio ao vivo, vendo do princípio ao fim toda a cena. Vendo o suficiente para afirmar, com a certeza de quem viu e ninguém lhe contou, que não houve provocações nem violência dos manifestantes.
À medida que me afasto da praça, com as pernas bambas, há uma ideia que não me sai da cabeça. Não havia um único jornalista presente. Não havia uma câmara, um microfone, nada, a não ser um videografo que estava claramente com os manifestantes, certamente para fazer um daqueles vídeos com que me deparo uma e outra vez nas redes sociais e em relação aos quais há sempre alguém que diz que a cena está descontextualizada, que a violência policial é justificada com as provocações de quem se manifesta.
Não há um único jornalista a registar a cena. E isso não me sai da cabeça enquanto me afasto.
No dia seguinte, um taxista reage com indiferença à pergunta sobre o incidente. “É assim todos os sábados”, responde com um encolher de ombros. E a resposta encaixa bem no ar coreografado da cena que vi. Os caçadores e os caçados, cientes desde o início dos papéis que lhes cabem, prontos para encenar uma e outra vez o momento em que uns atacam e os outros fogem, em que uns protestam e os outros batem.
E a violência policial? Era um punhado de gente pacífica, não fizeram nada de mal. “Oh, isto é a França”, reage o taxista. “Isto não é o Brasil. Vocês são do Brasil, não são?”. Não, não somos. “Bem, então, isto não é Portugal”. Calo-me. Por quanto mais tempo isto não será assim em Portugal?
Penso na vez em que, ao atravessar a Alameda com os meus filhos, passámos pelo meio de uma manifestação pela paz na Palestina. O relvado estava cheio de famílias, algumas com carrinhos de bebés, outras com crianças que brincavam entre os cartazes, enquanto os pais conversavam descontraidamente. Expliquei aos miúdos os cartazes e as bandeiras e passámos por dois polícias, que assistiam à cena de braços cruzados, junto a um carro-patrulha, que entusiasmou muito mais as crianças do que a manifestação. “Podemos tirar uma fotografia?”, perguntaram. A resposta foi um sorriso do agente, que se pôs em pose para o retrato.
“Bem, então, isto não é Portugal”, dizia o taxista. E a questão é também essa. É que a cena que eu vi não é na China nem na Rússia. É num dos berços das democracias representativas ocidentais. É em França. Não é na Coreia do Norte. É em França. É em França, repito para mim mesma.
Podemos encontrar todas as explicações que quisermos. Mas não podemos negar que aquela demonstração de força policial não serve para controlar o punhado de miúdos que gritava pela Palestina. Não seriam precisos tantos meios para o fazer. Menos de metade dos polícias serviria bem esse propósito. Não. O que ali está em jogo é uma ação de comunicação. Fica bem evidente o preço a pagar por divergir do que o Estado entende ser uma posição aceitável.
Aqueles jovens sabem bem ao que vão. E os que estão nas esplanadas estão a ser instruídos a ignorar o que se passa. Acontece todos os sábados. E não há nenhum jornalista presente. É claro que o que se passa em Gaza deve ser silenciado e é claro o preço que se paga por defender o contrário.
Um dos pilares da democracia ocidental é a liberdade de expressão e de manifestação. E é isso que está em erosão. As sucessivas crises, a ideia de estado de exceção, abriram caminho para que a força musculada do Estado seja usada para reprimir direitos que achávamos adquiridos. Está tudo a acontecer à nossa frente. Mas, claro, escolhemos não olhar. Talvez até ao dia que nos bata à porta. Talvez até ao dia em que não seja preciso ter a coragem daqueles miúdos para levar com cassetetes nos lombos.
A Marianne continua lá. Tem, sob os pés inscritas na pedra a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Mas a divisa parece, cada vez mais, uma letra morta. Um refrão que já quer dizer pouco.
Margarida Davim – Jornalista
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