Por Amanda Lima in Diário de Notícias

Enganados pelo Governo: limitações do visto CPLP dificultam vida de imigrantes
Setúbal, 12/10/2023 - Vanderson Almeida para imagem principal de Em Foco do DN. Reportagem sobre os vistos CPLP. Alguma dificuldades. Vanderson Almeida (Gerardo Santos / Global Imagens)

Muitos confiaram na informação oficial, prestada numa fase inicial pelo Alto Comissariado das Migrações no site e posteriormente retirada, de que poderiam viajar pelo Espaço Schengen. Documento também prejudica reagrupamento familiar e oportunidades de emprego.
Vanderson Almeida

Toda a vez que vai em busca de um emprego, a brasileira Karen Lima, de 23 anos, já sabe que terá de explicar o que é a Autorização de Residência para cidadãos da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (AR CPLP). “É humilhante. Todo o mundo olha com uma certa desconfiança quando entrego o papel”, afirma a jovem, que está a viver em Lisboa há um ano e quatro meses.

A descrição de Karen sobre o documento é real. A AR CPLP é apenas uma folha A4 impressa com um QR Code. Não há foto, nem identificação biométrica, o que foge totalmente ao padrão de documentação de imigrantes que moram na União Europeia (UE). “Acredito que se eu tivesse um título de residência normal já teria sido contratada, porque o papel não passa nenhuma credibilidade e vejo vários relatos assim entre brasileiros”, argumenta.

O modelo do documento é a principal razão pela qual a Comissão Europeia deu um prazo de dois meses para que Portugal explique porque “não cumpriu as suas obrigações no âmbito do regulamento 1030/2002, que estabelece um modelo uniforme para o título de residência para os nacionais dos países terceiros”. A notícia foi avançada pelo DN no dia 30 de setembro, altura em que mais de 151 mil pessoas já tinham o visto. Destes, cerca de 75% são brasileiros, seguidos de cidadãos de Angola (9,6%), São Tomé e Príncipe (6,4%) e Cabo Verde (4,4%), de acordo com dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) obtidos pelo DN.

A possibilidade de viajar ou não era uma dúvida entre os imigrantes desde o anúncio do visto. Em uma conferência de imprensa, no dia 10 de março, quando a novidade foi apresentada oficialmente, o então diretor do SEF, Fernando Pinheiro Silva, afirmou que o documento seria válido no Espaço Schengen. A mesma informação estava no site do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), em um documento oficial do Governo Português, atualizado no dia 12 de março. Em apenas três dias, 50 mil pessoas efetuaram o pedido da AR CPLP.

Depois, a publicação foi apagada do site. Atualmente, o que consta no portal, na aba “perguntas frequentes” sobre a AR CPLP, apresenta no item 3 a questão “O titular de AR CPLP tem direito a circular por todos os países Schengen?” e a resposta é: “Face às informações à data, não. A AR CPLP é uma autorização de residência emitida aos cidadãos nacionais de Estados onde esteja em vigor o Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste), e que confere o direito de residência em Portugal. Não existem garantias que o direito a circular pelo território de outros Estados-Membros por 90 dias num período de 180 dias, sem nenhum tipo de visto, venha a ser concedido, atendendo a que o Acordo de Mobilidade visa promover a mobilidade e liberdade de circulação no Espaço da CPLP”.

Ao DN, o Alto Comissariado para as Migrações nega que a informação tenha sido postada no site, dizendo que se tratava de uma “comunicação interna preparada com base na informação transmitida à data pelas entidades competentes”. Ao mesmo tempo, o ACM pontua que o documento, no qual constava a informação errada sobre as viagens, foi “partilhado internamente pelos serviços do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), nomeadamente nos Centros Nacionais e Locais de Apoio à Integração de Migrantes (CNAIM e CLAIM)”.

Ao contrário do que o órgão afirma, o print screen foi retirado diretamente do site do ACM na altura, portanto, encontrava-se disponível para acesso. Como também confirma o Alto Comissariado, a informação errônea foi partilhada com todos os centros de apoio aos imigrantes, que são consultados diariamente pelos estrangeiros em busca de respostas oficiais.

O sonho da Disney em Paris

A mudança pegou de surpresa muitos imigrantes, que achavam ter o direito de viajar pela Europa e agora se sentem “enganados”. Esse foi um dos motivos pelo qual a brasileira Natália Aragão, junto com o marido e dois filhos, trocou a Manifestação de Interesse (MI) pela CPLP. “Optamos pelas promessas que foram oferecidas no início, que poderíamos viajar tanto ao Brasil como dentro do Espaço Schengen. Nada mais justo, pois já que trabalhamos tanto aqui em Portugal, contribuindo com nossas responsabilidades fiscais, temos que ter o mesmo direito”, explica a brasileira, que mora em Torres Vedras. O sonho de levar os filhos de 11 e 7 anos à Disneylândia Paris vai ter de esperar, já que o futuro é incerto.

Na mesma linha está Karen, que além da dificuldade de conseguir emprego também não sabe quando poderá colocar em prática o planeamento da lua de mel na Grécia com a noiva. A AR CPLP é válida por um ano, renovável por mais dois períodos consecutivos de dois anos.

Há quem tenha tentado viajar e tenha sido impedido antes mesmo de chegar ao destino. Foi o que aconteceu com a brasileira Camila Oliveira, de 22 anos. Ao tentar embarcar em Lisboa para Paris, foi barrada pela equipa da companhia aérea. “Na hora do embarque não nos deixaram embarcar, dizendo que a AR CPLP não era válida no país e que a França estava fazendo imigração na fronteira, sendo que não existe imigração dentro do Espaço Schengen”, conta.

Insatisfeita, a imigrante, que trabalha na área da restauração em Cascais, procurou outra companhia aérea, que permitiu a viagem. “Eu acho muito confuso porque cada companhia diz uma coisa, o governo no começo disse que poderíamos viajar normalmente e depois disse que não poderíamos mais”, ressalta.

Teoricamente, os voos domésticos não passam pelo controlo de imigração. No entanto, fiscalizações podem ocorrer em qualquer aeroporto. A advogada brasileira Catarina Zuccaro, especialista em imigração, já teve duas clientes barradas numa operação em Bruxelas por causa da falta de reconhecimento do documento.

De acordo com a profissional, a situação é um risco: “As inspeções são cada vez mais comuns, seja por combate à imigração ilegal, seja por prevenção ao terrorismo”, argumenta. Por isso, a ideia de não haver controle no Espaço Schengen não é uma realidade. Além disto, Catarina afirma que também viu no site do ACM a informação errada.

O visto CPLP, existente desde março de 2023, está disponível tanto para quem o solicita no país de origem, como para quem já estava em território português com MI solicitada ao SEF até o dia 31 de dezembro de 2022. O processamento do documento leva apenas 72 horas e custa 15 euros.
Já a AR por Manifestação de Interesse pode levar até dois anos, entre o ingresso do pedido e o recebimento do cartão, mediante pagamento de 55 euros. Segundo explica Catarina, a rapidez e a “sensação de ter um papel que diga que estão aqui legais” dão segurança ao imigrante. Por outro lado, a especialista avalia que é uma “pseudo segurança”, e que a demora pela regularização, bem como a limitação da AR CPLP, são questões que influenciam a saúde mental dos estrangeiros.

O brasileiro Vanderson Almeida, de 36 anos, chegou a Portugal em novembro de 2021 e decidiu trocar a Manifestação de Interesse pela CPLP para ser mais rápido. Ao mesmo tempo, queria poder colocar em prática os planos que o fizeram mudar de país, como “viajar, explorar novas culturas e conhecer o mundo”, nos momentos de folga do trabalho como assistente num lar de idosos.

“Me senti enganado. Eu jamais optaria por um documento que me deixasse preso ao país, já que uma das grandes vantagens de morar aqui é poder viajar para outros lugares. Nós trabalhamos tanto, também temos direito ao lazer, isso afeta a nossa saúde mental”, pontua.

Ao mesmo tempo, Vanderson é esperançoso e diz estar “grato” pela oportunidade de viver e trabalhar em Portugal. Para ele, a solução do impasse é “fazer uma triagem, chamar as pessoas que já têm 1 ano de CPLP e emitir o cartão de residência, mesmo que tenhamos que pagar mais”, sugere. “Só assim todos ficam felizes – o governo por arrecadar muito dinheiro e nós por estarmos certinhos no país e poder, ao menos, desfrutar das nossas férias”, complementa.

A advogada brasileira Jamile Jambeiro, especialista em direito migratório, vê outra solução do impasse: “Sem dúvida, o melhor para aqueles que se arrependeram e hoje compreendem melhor os impactos jurídicos, seria a permissão para retornarem ao seu processo de regularização anterior ou qualquer outro meio que atualmente se enquadre, como por exemplo, reagrupamento, estudo, e outras exceções do artigo 122.º da Lei de Estrangeiros”, defende a profissional.

Deixados para trás no reagrupamento familiar

Entre idas e vindas do que o visto dá direito, mães e pais com filhos menores estão impedidos, no momento, de reagrupamento familiar. Ao DN, o SEF explicou que não se trata de uma proibição, mas que a preferência é para “cidadãos estrangeiros cujos pedidos de AR são anteriores à entrada em vigor do novo modelo AR CPLP”. Ainda de acordo com o órgão, o objetivo é manter “um contínuo e progressivo esforço de recuperação de pendências justo e equitativo”.

A informação diverge por delegações. No Porto, a advogada Catarina foi avisada de que não seria possível reagrupar com o documento CPLP. Já em Lisboa a resposta é para esperar.

A situação cria impasses aos pais e mães. É o caso de Cleizon Albuquerque, que mora com a esposa e os dois filhos, de três e oito anos, em Guimarães. O casal possui o documento, mas as crianças não. “Nas raras vezes que conseguimos uma ligação com o SEF, só dizem que é preciso esperar, porque a equipa está a aguardar orientações sobre o procedimento. O brasileiro, que tem 40 anos e trabalha como web designer, considera a situação “um absurdo”, porque as crianças ficam prejudicadas.

Sem o documento para os filhos, o casal não pode sair do país, por exemplo para visitar a família no Brasil, algo que estava nos planos. Em Portugal, Cleizon fica sem direito a apoios sociais, não têm acesso aos descontos nas refeições escolares nem um número de utente definitivo.

“Estou indignado, acho que foi feito tudo na correria, sem estudo, sem análise. Quando foi o Brexit tiveram direito”, desabafa.

Governo diz que não há ilegalidade

O governo português afirma que não há ilegalidade no modelo: “Estando convictos que não existe qualquer incompatibilidade entre o regime do Acordo de Mobilidade e o Regime da Área Schengen, continuaremos a aplicar o regime do acordo de mobilidade da CPLP e quem aspira a beneficiar da modalidade que este acordo prevê pode continuar a fazê-lo, naturalmente, num quadro de total legalidade”, respondeu ao DN o Gabinete da Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes.

No mesmo sentido, o gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes, informou ao DN que “o Governo irá responder à Comissão Europeia no prazo fixado de dois meses, garantindo a legalidade e a correção do conjunto de regras que foram adotadas em Portugal em execução do Acordo de Mobilidade da CPLP”.

O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social não respondeu às questões do DN sobre qual tipo de comunicação que foi realizada para anunciar o novo visto junto das empresas do país, bem como se estas podem discriminar candidatos com base nesta premissa. A direção executiva da CPLP também não respondeu às questões enviadas sobre as limitações do visto.

amanda.lima@globalmediagroup.pt

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