No tema dos maus-tratos infantis, somos imediatamente remetidos para abuso físico ou sexual, ainda que haja um crescente reconhecimento do impacto da violência psicológica e da negligência no salutar desenvolvimento das crianças. Não obstante, importa dar a conhecer uma outra forma de violência perpetrada pelos progenitores e que raras vezes é citada, isto é, o maltrato médico.
A atualmente chamada Perturbação Factícia Imposta a Outro foi outrora mais bem conhecida como síndrome de Munchausen, por inspiração ao barão alemão Karl Friedrich von Münchhausen que, durante o século XVIII, foi infame pelas suas histórias de guerra incríveis, fantásticas e, acima de tudo, inacreditáveis e fictícias. Similarmente, a conhecida síndrome de Munchausen consiste no fabrico de doenças físicas e mentais, de modo a obter ganhos secundários, como o reconhecimento e atenção de terceiros ou cuidados médicos.
Na esfera do maltrato a crianças, remetemo-nos para a síndrome de Munchausen por procuração, onde a doença e sintomas são fabricados em relação a outra pessoa, sendo mais frequente tal ocorrer em relações pais-filhos.
Um dos desafios inerentes a esta perturbação baseia-se na dificuldade que existe em identificá-la. Certamente, profissionais de saúde, deparados com uma criança aparentemente doente, não têm motivo para duvidar da veracidade dos relatos dos pais sobre os sintomas manifestos. De igual modo, os próprios cuidadores, por vezes também eles profissionais de saúde, tendem apresentar uma imagem altamente colaborativa no processo de intervenção médica, reduzido a probabilidade de se pôr em causa o seu relato.
Como tal, no que respeita aos progenitores em causa, normalmente mães, podemos encontrar três tipos mais comuns:
1. As que procuram apenas ajuda de forma geral, esperando o interesse e atenção dos profissionais de saúde. Habitualmente vêm de famílias problemáticas e abusivas.
2. As que são perpetradoras “ativas”, isto é, que recorrem a métodos agressivos e prejudiciais para a criança para simular os sintomas. São frequentemente instáveis do ponto de vista emocional e depressivas.
3. As que necessitam de ser a pessoa mais importante no processo. Estas mães tipicamente têm conhecimento médico, sugerem soluções à equipa médica, tentam manipulá-la e acabam por pôr em causa a competência daquela. O seu objetivo é, fundamentalmente, sentirem-se importantes.
Como vimos, esta perturbação tende a ser, então, caracterizada pela simulação de doença da criança pelo progenitor e pela frequente insistência para que a criança seja examinada, com asserções de que a causa da doença é desconhecida. Às vezes, assistimos também à manipulação de exames médicos. Por outro lado, temos intensidades diferentes que determinam a facilidade ou dificuldade de diagnóstico.
Na sua forma mais ténue e pura, assistimos a progenitores que, no seu relato, fabricam os sintomas da criança aos profissionais de saúde e que insistem reiteradamente no exame médico. Esta é, pelas suas características aparentemente inconsequentes, a forma mais difícil de identificar da perturbação.
Num nível moderado de gravidade, podemos já assistir a sintomas que são provocados pelos próprios pais.
O estádio severo da perturbação é, finalmente, o mais nocivo, incluindo situações de mutilação, subnutrição, envenenamento, asfixia e outras ações que, com o objetivo de obter atenção e preocupação de terceiros, podem levar à morte da criança. O impacto físico e emocional desta perturbação nas crianças é, então, significativo e potencialmente letal.
A complexificar este fenómeno, não é incomum que o progenitor maltratante, ao não obter atenção suficiente por parte da equipa médica, ou perante suspeitas, transfira a criança de hospital, recomeçando todo este processo.
Ainda que seja difícil identificar esta perturbação, não é impossível fazê-lo, sendo essencial a existência de um olhar e treino forense. Um dos mais importantes aspetos a observar é a flutuação dos sintomas nas crianças em relação à presença do cuidador. Ora, nestas situações, é frequente notar-se um alívio ou mesmo dissipação da sintomatologia quando o progenitor suspeito está longe.
Não esperamos que os profissionais de saúde saltem imediatamente para a conclusão de que a queixa de um pai sobre a doença inexplicável do seu filho é certamente simulada. Aliás, tal inferência pode ser altamente nociva para o bem-estar da criança e levar à negligência de uma doença real. Contudo, a atenção aos comportamentos dos progenitores e à resposta das crianças perante os mesmos não deve ser simplesmente colocada de parte.
O maltrato a crianças nem sempre se manifesta da forma a que estamos acostumados e nem sempre se traduz em nódoas negras ou choro. Estejamos alertas a estas outras faces do abuso.
Mariana Moniz – Psicóloga Clínica e Forense
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