• Abril 18, 2025
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Contra tudo e todos

A história é conhecida, ou assim parece. Todos ouvimos falar do caso de Hiroo Onoda, o soldado japonês que passou 30 anos escondido nas selvas das Filipinas, julgando que a guerra, a 2ª Guerra, não terminara: só se renderia em 1974, para espanto do mundo e da História. Onoda escreveu uma autobiografia – ou, melhor dito, uma narrativa dos seus anos de guerra – e, mais recentemente, o realizador alemão Werner Herzog escreveu um relato da sua vida, que acaba de ser traduzido e publicado entre nós na novel e excelsa chancela Zigurate, de Carlos Vaz Marques (O Crepúsculo do Mundo, 2023; declaração de interesses: no passado dia 5, em conjunto com o Pedro Mexia, fui apresentar esta obra à Feira do Livro).

A história bizarra de Hiroo Onoda foi também alvo, como é óbvio, da atenção do cinema e objecto de vários filmes: uns de comédia, com Terence Hill e Bud Spencer (Quem Encontra um Amigo, Encontra um Tesouro, de 1981), outros mais sérios, com destaque para o recente Onoda: 10.000 Noites na Selva, do francês Arthur Harari, por cá estreado o ano passado com grande aplauso da crítica. Também a TV se interessou pela história, recriando-a em algumas séries, e – informa-nos a Wikipédia -, em 1981 foi até lançado um álbum musical, Nude, da autoria da banda inglesa Camel, inteiramente inspirado nas aventuras e desventuras do soldadito nipónico.

O que menos se sabe, porque menos se fala, é que o último filme de Josef von Sternberg, A Saga de Anatahan, de 1953, aborda um tema parecido, contando a história de 12 marinheiros japoneses que, em Junho de 1944, foram deixados sós numa ilha do Pacífico, onde permaneceram durante sete anos. A fita baseia-se num livro do escritor Michirô Maruyama, um dos sobreviventes dessa saga, sobre a qual ainda hoje pairam muitas histórias, a mais conhecida das quais – com um fundo de verdade – assevera que os resistentes nipónicos eram liderados por uma mulher, Kazuko Higa, que vivia nos confins da ilha com um harém de cinco militares do Sol Nascente. O mundo é um lugar estranho.

Existiram muitos casos como estes, histórias de soldados japoneses que se recusaram a aceitar a derrota do seu país e a perda do poder divino do imperador: atemorizados pela propaganda de guerra, que dizia que os americanos tratavam barbaramente os seus presos, o sargento Masashi Ito e o soldado Bunzo Minagawa refugiaram-se nas florestas de Guam quando esta ilha foi tomada pelos Aliados em 1944 – aí permaneceram durante 16 anos, em condições miseráveis, e só foram capturados em Maio de 1960. Quando lhes perguntaram se não tinham recebido notícias da derrota do Japão, enviadas por milhares de panfletos lançados a partir dos céus, responderam que tinham julgado que tudo não passava de uma mentira da propaganda yankee, o mesmíssimo argumento que Hiroo Onoda usou para justificar ter passado 30 anos em combate nas selvas das Filipinas.

Diferente foi o caso de outro soldado, Soichi Yokoi, também refugiado nas florestas de Guam durante dezenas de anos, juntamente com outros nove camaradas, que acabaram por perecer um a um, deixando-o sozinho contra tudo e todos. Em 1952, Yokoi soube que a guerra acabara e que o seu país se rendera, mas recusou entregar-se – e aceitar a verdade – pois, por um lado, tinha vergonha de regressar a casa como um derrotado e, por outro, convencera-se de que o Japão voltaria a erguer-se das cinzas para enfrentar a América e retomar o domínio de Guam. Viveu escondido num buraco escavado na terra, quase três metros abaixo do solo, coberto por uma densa mata de bambu e aí esteve, imagine-se, durante 28 anos, até Janeiro de 1972, quando foi descoberto casualmente por dois camponeses, que enfrentou com violência e aos quais se rendeu a muito custo. Regressou ao Japão como uma celebridade e, compreensivelmente, tornou-se um paladino de uma vida frugal e austera, como aquela que levara metido num buraco imundo.

São muitos e variados os casos de soldados insurrectos: Teruo Nakamura, que esteve escondido no interior da Ilha de Morotai até 1974, o recordista dos foragidos, que, por não ser de etnia japonesa, mas de uma tribo aborígene, não recebeu a fama, nem os louvores concedidos a Hiroo Onoda. Enquanto este foi tratado como um herói e recompensado com um prémio de 160 mil dólares, equivalente a 850 mil dólares ao câmbio de 2017, o aborígene Nakamura não recebeu mais do que 227 dólares, equivalentes a 1186 dólares ao câmbio de 2017.

Também bizarro foi o caso de Ishinosuke Uwano: colocado na Ilha Sacalina, acabou por ser capturado pelos soviéticos quando estes capturaram a parte sul dessa ilha, em Agosto de 1945. Levado para a Sibéria, acabou por não ser repatriado para o Japão e desde 1953 que a família nunca mais soube dele. Em 2006, soube-se que estava vivo, com 83 anos, e que se tinha fixado na Ucrânia, onde casara e constituíra família, mulher e três filhos. Entretanto, tinha sido declarado morto pelas autoridades japonesas, pelo que, quando regressou ao seu país de origem para visitar as campas dos antepassados e para ver as cerejeiras em flor, fê-lo na qualidade de cidadão ucraniano, a terra que o próprio dizia ter passado a ser a sua.

Outros renderam-se mais cedo, mas ainda assim muito depois de a guerra ter acabado, como foi o caso de Ei Yamaguchi, refugiado na Ilha de Peleliu, que se entregou apenas em Abril de 1947, ou de Matsudo Linsoki e Yamakage Kifuku, detidos em Iwo Jima em 1949. Mais trágico seria o caso do marinheiro Noboru Kinoshita, foragido nas Filipinas e capturado pelas autoridades deste país em 1955; pediu aos guardas prisionais que o matassem, pois dizia ter vergonha de regressar ao Japão como um derrotado. Um mês depois de ter sido capturado, enforcou-se na sua cela. Tinha 33 anos.

Na Alemanha nazi, também houve quem não aceitasse a derrota e Himmler chegou a criar a Operação Lobisomem, uma força de resistência e guerrilha que deveria operar atrás das linhas dos Aliados. Foi sol de pouca dura. De acordo com a maioria dos historiadores, os “lobisomens” nunca foram uma ameaça séria para as tropas anglo-americanas e, apesar de terem perpetrado uma série de atentados, alguns dos quais mortais, jamais conseguiram captar o apoio da população alemã, cansada de guerra, sedenta de paz, apavorada ante o avanço dos russos e, de um modo geral, cooperante com os seus libertadores americanos e ingleses.

Para tantos casos de resistência nipónica terão militado, como é óbvio, um código moral e uma noção de honra castrense muito diferentes dos que vigoravam a Ocidente – e patentes, desde logo, no exemplo sacrificial do kamikaze -, mas também a peculiar configuração física e geográfica do teatro de guerra do Pacífico, travada em centenas de ilhas semi-virgens, com montanhas e florestas de acesso remoto.

Mais interessante do que tentar perceber o “caso” de Onoda e de outros camaradas seus, que estiveram durante décadas perdidos na selva, é compreender o processo de mitificação e heroicização que ainda hoje nos leva a julgarmos que a saga daquele japonês foi um acontecimento singular e isolado. Como atrás se mostrou, foram muitos os japoneses que não aceitaram a derrota e a rendição, muito mais do que julgamos. Num livro apaixonante, Corações Sujos. A história da Shindo Renmei (Companhia das Letras, 2001), o jornalista e escritor Fernando Morais reconstruiu as peripécias da Shindo Renmei – ou Liga do Caminho dos Súbditos – uma organização secreta criada por imigrantes japoneses em São Paulo que se recusaram a admitir que o Japão tivesse perdido uma guerra pela primeira vez em 2600 anos de História.

A comunidade nipónica paulista dividiu-se entre uma minoria de cerca de 20%, que aceitou a derrota, e uma esmagadora maioria, cerca de 80%, que se recusou a admitir o óbvio e optou pela luta armada. Muito curiosamente, o ódio dos “vitoristas” da Shindo Renmei, os kachigumi, não se virou contra as autoridades brasileiras, mas contra a minoria dos “derrotistas”, os makegumi, logo apelidados de “corações sujos”. Militarista e tradicionalista ao extremo, a seita semeou o caos durante um ano – sensivelmente, entre Janeiro de 1946 e Fevereiro de 1947 -, perpetrando atentados e sabotagens que fizeram 23 mortos e cerca de 150 feridos. A polícia acabaria por deter mais de 30 mil suspeitos de crimes, dos quais 381 foram condenados a penas que variaram entre um e 30 anos de prisão. O Presidente da República chegou a assinar uma ordem de deportação de 155 dirigentes e matadores da Shindo Renmei, mas o exílio nunca acabou por ter lugar e o caso acabaria por prescrever. Ainda assim, 14 dos operacionais da seita (os tokkotais) cumpririam pesadas penas no cárcere.

A diferença dos destinos: enquanto os membros desta seita brasileira foram condenados, ostracizados, perseguidos, Hiroo Onoda regressou em glória ao seu país natal, escreveu uma autobiografia, foi objecto de filmes e série de televisão. Quando Werner Herzog foi ao Japão, em 1997, para encenar a ópera Chushingura, declinou um convite para se encontrar com o imperador, mas pediu para se avistar com uma e uma só pessoa: Hiroo Onoda, o combatente perdido das Filipinas. Um homem que, note-se, omitiu na sua biografia as vítimas mortais que fez nos 30 anos que passou na selva, nomeadamente entre os camponeses pobres da Ilha de Lubang, que não hesitou em abater para lhes roubar comida, gado, bens de primeira necessidade. Seria indultado pelo Presidente Ferdinand Marcos, num gesto de boa vontade e de charme para com o governo de Tóquio, mas a triste memória das suas acções não se perdeu entre os ilhéus de Lubang, que viveram durante décadas aterrorizados por aqueles a quem chamavam “os demónios da montanha”.

Quando Onoda retornou a casa, incentivaram-no a entrar na política, a candidatar-se à Dieta, recebeu uma indemnização vultuosa pelos anos de serviço (que ele doaria ao Santuário Yasukuni). Decidiu fixar-se uns tempos no Brasil, onde vivia o seu irmão, e fez-se criador de gado em Mato Grosso. Seria agraciado com a Medalha do Mérito Santos Dumont, pela Força Aérea Brasileira, e, em 2010, receberia o título de Cidadão Honorário da Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Quando morreu aos 91 anos, em 2014, de uma insuficiência cardíaca motivada por uma pneumonia, o secretário-chefe do governo japonês, e depois primeiro-ministro, Yoshihide Sunga, elogiou a sua capacidade de sobrevivência e o seu exemplo de combatente.

Num certo sentido, é inquestionável e até admirável a resistência – ou, como agora se diz, a resiliência – de um homem que viveu 30 anos no mato, em condições perigosas e deploráveis. É também admirável o seu sentido de dever e de amor à pátria, por muito surreal e bizarro que nos pareça aquele seu conceito de patriotismo. Do ponto de vista literário ou cinematográfico, a história de Hiroo Onoda tem ingredientes notáveis: a solidão de quem abraça um ideal de vida e de morte; a fusão com a natureza e a terra, em jeito de Robinson Crusoe moderno, numa linha “anti-sistema” que vai do Thoreau de Walden ou a Vida nos Bosques aos hippies e a muitos ecologistas da actualidade.

De igual modo, a saga de Onoda presta-se a divagações filosóficas sobre o tempo ou, melhor, sobre o situar-se fora do tempo e do mundo, não sendo ao acaso que, a dado trecho da sua autobiografia (Au Nom du Japon, trad. francesa, 2021), ele afirme precisamente isso, que durante anos viveu fora do tempo, mantendo-se fiel apenas a uma coisa, essa, absoluta e sagrada: o juramento que fizera ao seu superior hierárquico, em Dezembro de 1944, a quem disse que continuaria a lutar até ao fim – e, note-se, que em circunstância alguma iria suicidar-se.

No entanto, faz parte da lenda e do mito dizer-se, por um lado, que o seu exemplo foi singular e jamais visto, uma vez que, como atrás referimos, muitos procederam como ele e até houve alguns que bateram os seus recordes de resistência. Por outro lado, a ideia de que Onoda passou três décadas sozinho na selva é, também ela, inverídica, já que esteve acompanhado de três camaradas, o último dos quais faleceu não muito antes de Onoda se ter rendido. Por fim, e o mais importante, não é verdade que ele e os seus camaradas tenham sido esquecidos na selva durante 30 anos, seja pelas autoridades filipinas, seja pelas japonesas. O que a sua autobiografia mostra, bem pelo contrário, é que, ao longo de décadas, e de uma forma sistemática, houve muitas dezenas, talvez centenas, de tentativas de contacto do exterior. Até pelos ataques que frequentemente fazia aos camponeses de Lubang, sempre se soube que estava vivo, nunca se perdeu a esperança de o chamar à razão e à paz. Assim, foram efectuadas diversas tentativas de resgate, foram lançados papéis e jornais sobre as montanhas, mostrando que o Japão perdera, foram assinadas e transmitidas ordens para que se rendesse, deixaram-se sinais e avisos nas cavernas, nos trilhos mais frequentados, junto aos cursos de água. Em mais do que uma ocasião, o seu irmão deslocou-se de propósito do Brasil até Lubang, fez apelos ao microfone para a selva dentro, recitou poemas e cantou canções de juventude, para provar que era ele; noutras vezes, deixaram-se no campo fotografias das famílias dos soldados resistentes, umas tiradas antes de 1944, outras passados vários anos, tudo para lhes provar que a guerra tinha acabado e que era tempo de voltar a casa. Tudo em vão.

O que sucedeu a Onoda e aos seus companheiros é um assombroso estudo de caso sobre a psicologia humana e, mais do que isso, sobre até onde pode levar a auto-ilusão e o conspirativismo: em todas as provas que lhes eram apresentadas – jornais, panfletos, imagens do casamento do príncipe herdeiro, fotografias de família -, Onoda e os camaradas encontravam pormenores que os levavam a desconfiar, detalhes ínfimos que, na sua perspectiva, demonstravam que tudo não passava de um ardil e de uma artimanha dos norte-americanos, que ao longo de décadas forjavam jornais inteiros, faziam comunicados falsos, manipulavam imagens e sons – até a voz do seu irmão! – para os fazerem cair numa cilada e para os levarem a baixar as armas. Mesmo perante as evidências mais retumbantes e esmagadoras de que o Japão havia perdido a guerra, aqueles homens optaram sempre, mas sempre, pela cegueira e pela crença, pela irracionalidade absoluta. Quando hoje nos espantamos por haver gente que não acredita que a Terra é redonda, que nega a existência da covid e a eficácia das vacinas, que rejeita o que dizem cientistas e organizações internacionais sobre o aquecimento climático, deveríamos ler o que nos escreve Hiroo Onoda nas suas memórias ou o que afirma Werner Herzog no seu livro. Dois ensaios sobre a cegueira.

Na selva, formou-se aquilo a que, num estudo clássico (Secrets: On the Ethics of Concealment and Revelation, 1982), a psicóloga e filósofa Sissela Bok chamou uma “comunidade de segredo”, feita da partilha das mesmas convicções inabaláveis, numa atitude de cerco e de autodefesa contra tudo e todos. Em momento algum os camaradas de Onoda duvidaram de que as mensagens que recebiam do exterior eram fruto de propaganda dos americanos, pois estavam totalmente convictos de que o Japão não só não perdera a guerra como continuava a lutar pelo domínio do Pacífico. Paradoxalmente, o facto de serem um grupo, uma “comunidade”, ajudou à ilusão: em vez de se questionarem uns aos outros, Onoda e os seus camaradas foram reforçando mutuamente a certeza de que estavam certos – e o mundo inteiro enganado. Não por acaso, foi só quando morreu o último dos seus companheiros que Onoda começou a vacilar e a interrogar-se sobre o sentido da sua luta, acabando por render-se após ter encontrado um hippie seu compatriota acampado nas montanhas de Lubang. Também paradoxalmente, ou talvez não, as agruras da vida na selva não dissuadiram aqueles soldados: pelo contrário, o facto de terem de lutar por comida e por um abrigo, o facto de estarem permanentemente alerta, deslocando-se de um lado para outro, não estando no mesmo lugar mais do que dois ou três dias, tudo isso, todo esse movimento perpétuo, acabou por reforçar os traços sacrificiais e quase místicos da sua “missão”, tornando-a mais nobre e heróica, mais inquestionável. Por estranho que pareça, se a permanência na selva fosse mais agradável, se não tivessem de enfrentar as picadas das abelhas e das centopeias, os escorpiões e as cobras “da grossura de uma perna” (Onoda dixit), ter-se-iam, provavelmente, rendido mais cedo. A existência de um grupo e de uma atmosfera hostil, ou assim pressentida como tal, foram dois elementos essenciais para aquela queda no surrealismo negacionista, para décadas passadas num ambiente onírico e irreal, de dream within a dream, muito potenciado pelas neblinas da selva e pelas brumas da montanha.

Não haveria, por isso, grandes motivos para que Hiroo Onoda fosse tão festejado e celebrado quando regressou ao Japão: negou a verdade histórica, matou camponeses inocentes, liderou um punhado de homens que morreram estupidamente, um a um, por uma causa perdida. No entanto – e é disso que se fazem os mitos e as glórias das nações -, Onoda era mais do que um destroço ou um despojo de guerra, era o símbolo vivo de uma ética e de um código de combate que, apesar de autodestrutivo e homicida, permitia ao Japão orgulhar-se de alguma coisa, mesmo tendo perdido a guerra e a sua honra, sobretudo, acima de tudo, após o traiçoeiro ataque a Pearl Harbor. A criação da lenda do resistente intrépido, perdido na selva e isolado do mundo, e mesmo que ao serviço de uma causa estúpida, permitiu encontrar uma réstia de abnegação e nobreza numa guerra sem sentido e sem norte. Para uns, o sucedido com Onoda e com outros como ele não passou de uma idiotia monumental, ademais responsável por escusadas mortes. Para outros, há um lado admirável no modo como aquele soldado aceitou a sua missão e a levou até ao fim, contra tudo e todos.

Seja qual for a opinião que tenhamos sobre Onoda e os seus camaradas, há algo que eles nos merecem: o respeito. Hiroo Onoda tinha pouco mais de 20 anos quando foi incorporado no Exército, ao serviço do qual esteve 32 anos. Lutou e sofreu durante três décadas apenas e tão-só porque aquela era a missão que lhe tinha sido atribuída. Alguns dos seus companheiros sofreram tanto ou mais do que ele: um deles era casado, tinha a mulher grávida à espera do segundo filho, que nunca chegou a conhecer, pois acabou morto em Lubang. Durante anos, suspirou por reencontrar a família, mas nunca se afastou do dever nem sugeriu aos camaradas que se rendessem para voltar a casa.

Em Ultramar na Pele, um livro editado em 2020 pelo Instituto Açoriano de Cultura, a tatuadora e body piercer Diana Gomes e o fotógrafo Rui Caria fizeram um levantamento extraordinário das inscrições no corpo e dos testemunhos de alguns dos ex-combatentes da Guerra Colonial. O resultado, como é óbvio, é comovente: homens no entardecer da vida, com os braços e os peitos tatuados com imagens de mulheres nuas, de corações, de aviões de combate, e dizeres como “Sangue, Suor e Lágrimas”, “Angola 1974”, “Angola Por Ti Lutei”, “Amor” ou o clássico “Amor de Mãe”. Um, mais convicto, chegara a inscrever “Viva Salazar” no antebraço, mas depois pediu insistentemente que Diana Gomes removesse o dito; outro afirmou que “Ainda hoje as feridas não sararam”; e outro ainda, o mais pungente de todos, que disse, a dado passo da entrevista, “Se eu chorar, não me leve a mal.” (uma nota pessoal: ali encontrei, por mero acaso, Luiz Espanhol, que em 1974 se voluntariou para os pára-quedistas em Angola e que, muitos anos depois, seria o meu instrutor de recruta na Base da Ota). Em Ultramar na Pele e em muitos outros relatos que têm surgido de ex-combatentes, percebemos que, como sempre, há gente de diversas ideologias e variadas opiniões: uns que criticam a guerra e o regime que a ordenou (“O tempo de Salazar foi muito triste”, diz um deles, Manuel Santos Melo Ferreira), outros que não se arrependem de nada e até defendem o governo da altura.

É abusivo e abominável politizar os ex-combatentes, convocando-os para as guerras ideológicas do presente, usando-os como armas de arremesso contra a democracia ou, em sentido oposto, tratando-os como um bando de saudosistas da ditadura ou como agentes do colonialismo lusitano. Manda a verdade que se diga – e reconheça – que, na sua esmagadora maioria, os soldados portugueses que combateram em África foram, também eles, vítimas da Guerra Colonial, cujas marcas ainda hoje carregam consigo, indelevelmente inscritas nos seus corpos e nos seus espíritos. Devemos-lhe, por isso, o respeito merecido por todos os que sofreram e sofrem, algo que está muito acima das querelas da política e das lutas da ideologia. O respeito devido aos antigos combatentes não é de esquerda, nem de direita, mas um imperativo humano, de dignidade e memória.

 

 

António Araújo

Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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