• Junho 29, 2025
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Como habitar poeticamente o mundo?

“Poeticamente habita o Homem”
Hoelderlin

“Que mais nenhuma árvore se descerre
para as folhas do poeta, nenhuma cotovia
para que ele encontre a música”

Andreia C. Faria

Por que razão, de tantos novos títulos de poesia (ela existe com força, mesmo que se não fale dela) publicados este ano, eu destaco Mulher ao mar e corsárias de Margarida Vale de Gato, Adriano de Tatiana Faia e Não Desfazendo de Rita Taborda Duarte? Não posso dizer que sejam em absoluto os melhores livros de poesia que li este ano, apenas sinto (crítica impressionista, no seu pior…) que neles se veicula uma nova linguagem para a nossa poesia e um novo posicionamento para a figura do poeta.

O mais interessante é verificarmos que estas poetas não vieram romper barulhentamente com linguagens e gestos passados, elas vêm simplesmente afirmar o novo e olhar para o passado a partir desse novo, mas com um olhar tranquilo, que não precisa de matar pai e mãe e chamar-se a si próprio de maldito para afirmar o seu brilho e a sua originalidade.

Seria, porém, demasiado fácil especular sobre um pretenso caráter feminino dessa atitude de tranquila interrogação à poesia que apercebemos nestas novas autoras. É que a beleza deixou de ter de ser convulsiva sob pena de inexistência, e um humor que nos põe em guarda contra os delírios da “aura poética”, como o de Rita Taborda Duarte, acaba por ser mais disruptivo do que todas as convulsões imaginadas.

O saber poético conhece a sua mais perfeita encenação nos poemas de Margarida Vale de Gato e a pesada herança clássica aligeira-se até a uma (usemos destemidamente o lugar comum em que se transformou uma bela expressão de Milan Kundera) “insustentável leveza” na poesia de Tatiana Faia. É uma poesia culta, esta que nos chega destas três vozes, mas não estamos de modo algum diante da figura do “poeta sábio”, junto do qual “as ménades não voam”, do poema de Sophia. A leveza destes textos, a sua desenvolta ironia com a História, ajudam-nos a viver de modo novo a poesia neste tempo que a nega dia a dia.

Cada vez mais temos o sentimento que as velhas artes (a caligrafia, a recitação) protegem o que é humano em nós da emergência de um mundo transumano. Não é já a “desumanização da arte”, de que se queixava Ortega y Gasset, é mesmo a substituição do humano pelo virtual e pelo artificial e os velhos saberes, como o da poesia, ajudam-nos a resistir com todas as nossas faculdades humanas, talvez demasiado humanas, ao império da digitalização e da tecnocracia.

Não é por acaso que se começa agora a falar (v.g. Jean Claude Pinson, Pastoral) numa “eco-poesia” e se liga a atividade poética à nossa inserção na terra, ao nosso (difícil) relacionamento com Gaia. A luta do humano com o natural, que foi necessária para afirmar a diferença e a dignidade da nossa espécie, entra agora numa nova fase de diálogo, que, sem esquecer as contradições que permanecem, aponta a um novo e necessário entendimento com a Natureza. A isso nos obriga a crise que foi desencadeada com o Antropoceno, um processo que não cabe nas nossas previsões: Ressurreição ou Apocalipse?

E cumpre falar agora, como do quarto mosqueteiro numa lista de três, do notável livro de João Moita que túmulo em que talhão, em que a visão da terra devastada anima uma poética disfórica, de rigorosa contenção verbal e de grande riqueza imagética, revelando-nos um poeta novo com uma voz própria e uma proposta diferente.

O nosso otimismo hoje, contrariamente ao do passado, põe as suas esperanças na imprevisibilidade dos acontecimentos e não num futuro determinado cientificamente a levar-nos ao paraíso. Procuramos novos laços entre nós e a terra, como um lavrador que arasse minuciosamente o seu campo na expetativa de uma semente desconhecida.

E é por isso que falamos de poesia.

 

Luís Castro Mendes

Diplomata e escritor

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