• Abril 20, 2025
Logo_Site_01

Dinheiro, futebol, ideologia

Com a chegada do verão, a presença esmagadora do futebol no nosso quotidiano adquire uma dimensão muito particular. Assim, a maioria das notícias não dizem respeito a jogos, campeonatos, tácticas, estratégias ou qualquer disparate graciosamente cometido em nome da ciência do VAR. São notícias sobre dinheiro e circulação de dinheiro: as transferências de jogadores estão na ordem do dia e, mais tarde ou mais cedo, irá aparecer algum duplo de Lionel Messi a comover-nos com as lágrimas de quem abandona o clube do seu coração para se mudar para outro clube onde, por mero acaso, vai ganhar ainda mais milhões.

Os valores que circulam são tanto mais fascinantes quanto surgem imbuídos de uma neutralidade ideológica que parece inerente à existência do futebol. Tais valores conseguem mesmo a proeza de reduzir os orçamentos de outras áreas sociais — pensemos, por exemplo, no chamado domínio cultural — a involuntárias caricaturas numéricas cuja irrisão os responsáveis políticos, honra lhes seja feita, vão justificando com denodo e inequívoca sinceridade.

O projecto de organizar um Mundial de Futebol tem estado a ser injectado no quotidiano como coisa também neutra e natural, supostamente essencial para a gloriosa afirmação de Portugal no mapa da globalização. Definitivamente, importa pensar além (ou aquém) dos discursos piedosos que tentam convencer-nos que tudo depende da criação de novos equilíbrios na circulação do dinheiro, atendendo também às actividades ditas culturais.

Há, de facto, uma chantagem inerente a muitos usos da palavra “cultura”, aliás sancionada, nem que seja por cândida ignorância, por políticos de diferentes sensibilidades ideológicas. Aquilo a que estamos a assistir (aliás, que estamos a viver) é o metódico triunfo de uma outra cultura — cultura da performance e do sucesso em que o futebol é, de uma só vez, matéria central e narrativa dominante.

Chamar a atenção para as avalanches de dinheiro que definem, sustentam e promovem o universo futebolístico não envolve qualquer denúncia moralista do uso desse dinheiro. Mesmo injectando alguns caridosos milhões no Ministério da Cultura, nenhuma esquerda, nenhuma direita resolveria o efeito dantesco (cultural, precisamente) de, em plena democracia, a partir de 1978, os poderes decisores do audiovisual terem escolhido a telenovela como modelo dominante de ficção todos os dias presente nos lares de todo o país, ao mesmo tempo que assistimos à secundarização (em alguns casos, destruição) do tecido nacional de salas de espectáculo (cinema, teatro, etc.).

Aquilo que estas linhas visam é francamente mais reduzido do que a avalanche de questões recordadas nos parágrafos anteriores (e para as quais não tenho a pretensão de conhecer qualquer solução automática, muito menos mágica). Decorre do facto de a discussão cultural do futebol estar virtualmente bloqueada no nosso país, ao mesmo tempo que qualquer sobressalto financeiro que possa ocorrer noutros domínios — a começar pelo cinema — surge sistematicamente enquadrado por uma proclamação hipócrita, disfarçada de pedagogia. A saber: nesse caso, está em jogo o dinheiro dos contribuintes!

Como? Para podermos ver em casa a maior parte dos jogos de futebol, nacionais ou internacionais, pagamos assinaturas a preços que estão longe de ser banais… Em alguns casos, os bilhetes para os jogos chegam a, ou ultrapassam mesmo, uma centena de euros. Compram-se camisolas com o nome do nosso jogador preferido (para já não falar de outras peças de equipamento) por valores que oscilam entre os 40 e os 100 euros… Daí a pergunta: afinal de contas, feitas as contas, quem gasta tais valores deixou de ser contribuinte? Então, é o quê?

Eis um sintoma perverso do enfraquecimento social da cultura do Estado – entenda-se: de uma cultura capaz de valorizar (e fazer existir) o Estado como expressão dinâmica e criativa do colectivo de cidadãos. Se nos dizem que alguns cêntimos do nosso bilhete de cinema (que pagámos por uns austeros sete ou oito euros) vão ser investidos, por exemplo, na produção de filmes, há sempre vozes chocadas com o “roubo” a que os contribuintes estão a ser sujeitos… Mas se alguém gasta dez, vinte ou trinta vezes mais para assistir a um jogo de futebol, há um milagre divino que o exclui dos dramas dos contribuintes: o seu dinheiro não vai para lado nenhum porque está apenas a comportar-se como um adepto… Ser adepto tornou-se mesmo uma forma feliz de ser extraterrestre.

 

João Lopes

Jornalista

Anuncie aqiu
    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

    Logo branco

    Ultimas Noticias

    Categorias

    Logo branco
    Comunidade Lusa é um site de notícias onde pode encontrar as mais recentes informações sobre a nossa comunidade portuguesa no mundo e acima de tudo na Suíça. Aqui encontra também novidades sobre eventos culturais e temas como: desporto, mulher, opinião e publireportagens muito interessantes sobre empresas na Suíça.
    © Comunidade Lusa 2025. Todos direitos reservados.
    WP2Social Auto Publish Powered By : XYZScripts.com