A existência de ordens profissionais, alegando regular o acesso e o exercício de determinadas profissões, ditas liberais, supostamente em nome do Estado e do interesse público, é, na verdade, uma extraordinária desilusão, promovida a partir de um tipo ideal de corporativismo basista e conveniente, de contornos medievais, alimentado pelo Estado Novo e continuado, e exacerbado, por motivos estranhos, em democracia.
Uma das ideias essenciais é a de que, para iniciar um exercício profissional, não basta uma certificação académica e vontade de o fazer, mas exige-se um período de humildade pessoal iniciática e uma avaliação pelos pares e futuros concorrentes nessa profissão. É o caso típico da Ordem dos Advogados, eventualmente aquela que possa ser a mais ativa em função do número, elevado, de juristas que pretende todos os anos ser advogado. Este é, aliás, um bom exemplo do que é o exercício de poder por uma ordem profissional, em nome da sacrossanta necessidade de qualidade no desempenho de uma profissão, esse argumento salvífico que fica comprovado todos os dias, nos nossos tribunais.
Como me contava um colega da Faculdade, um dos piores alunos que teve em Direito foi convolado, pouco tempo depois, já licenciado, em formador nas aulas de estágio da Ordem dos Advogados, sendo até aliás o docente de estágio nas matérias a que, a grande custo, havia sobrevivido na faculdade. Este é um panorama que existe: uma ordem profissional que tenta replicar a formação dada pela universidade, provavelmente com menos critério — ou um critério menos público e menos avaliável — na escolha dos seus formadores, e que usa também o período de estágio para fornecer mão-de-obra barata, quando não gratuita, aos profissionais já instalados no ofício, em nome de um tirocínio que julga absolutamente legitimador e sempre de costas voltadas para as instituições que, efetivamente, formam os profissionais em causa: as instituições de ensino superior.
Um dos argumentos mais inaudito que ouvi nestes últimos dias, da lavra também da Ordem dos Advogados, foi o de que os licenciados ou mestres ou doutores em Direito não são afinal aptos a providenciar um conselho em matéria de Direito, sendo apenas os advogados a poder efetivamente fazê-lo. Vamos lá ver. Todos sabemos que o Direito, que é coisa verdadeiramente muito básica, nascida da necessidade de saber e decidir a quem pertence isto ou a quem deve caber pagar por aquilo, já não é uma realidade mágica, a dever ser detida e manobrada por druidas sabedores. O Direito está e aplica-se todos os dias, entre toda a gente. E assim deve ser sempre, cada vez com mais informação generalizada, capacidade de exercício de direitos, capacidade de exigir o seu cumprimento, sem a necessidade de contratar o senhor x ou a senhora y para saber o que é devido.
Não pode um licenciado ou um mestre em Direito produzir uma análise de um problema jurídico sem o ferro burocrático da Ordem dos Advogados, crivado e bem pago pelo interessado, na sua fronte? Era o que faltava!
O Governo, autor das propostas de lei de alteração da situação em causa, não o pode dizer, mas eu posso, até porque sou, creio, insuspeito de ser um escriba ao serviço do Governo. Em matéria de ordens, recordo sempre um advogado que tinha como cliente uma ordem profissional, à qual dava apoio jurídico, nomeadamente em processos disciplinares iniciados contra profissionais desse ofício por queixas de particulares que a eles recorreriam. No entanto, vivia uma dificuldade quotidiana com esse cliente: quase todos os processos disciplinares que lhe chegavam através dessa ordem, chegavam-lhe apenas no momento em que já estavam prescritos… Ou seja, alguém punha, corporativa e conscientemente, esses processos numa gaveta, antes até de seguirem para o seu próprio advogado. Não posso, claro, afirmar que esta é a realidade de todas as ordens profissionais nem a sua real dimensão. Mas que o quadro atual do exercício de poderes pelo próprios interessados nesses poderes e nesses resultados parece ser um quadro muito limitado e instigador até deste tipo de contradições, lá isso é. E o melhor modelo para melhorar a realidade não é limitar financeira e administrativamente o acesso a uma profissão, mas sim efetivamente ponderar e sancionar o seu eventual mau desempenho. E isso, sim, é um novo paradigma de trabalho, para todos nós, e não apenas para as ordens profissionais — aquelas que, afinal, apenas existem porque servem o interesse de toda a comunidade.