• Abril 20, 2025
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Entre os dedos e o sapato

Quando o pé não entra no sapato, é mais inteligente trocar ou ajustar o calçado do que mutilar os dedos do pé: é essa a escolha em que a União Europeia tem sido useira e vezeira, na procura soluções para assegurar a coesão entre os estados-membros ou, como é agora o caso, adotar políticas de asilo comuns que permitam enfrentar, de forma mais solidária, a crise migratória.

Os 27 sócios da União parecem ter chegado finalmente a um princípio de acordo, na expectativa de ultrapassar anos de divisão, desde 2015, quando mais de um milhão e meio de pessoas — a maioria fugindo da guerra na Síria — chegaram à Europa pelo Mediterrâneo. Desde então, entre as duas margens deste mar, transformado em gigantesco cemitério, morreram mais de 20 mil imigrantes e refugiados cujos corpos deram à costa ou permanecem desaparecidos.

Sob o princípio da “solidariedade flexível, mas obrigatória”, o acordo assenta em dois pilares: por um lado, endurece as condições de entrada dos que procuram asilo e, por outro, vincula os Estados-Membros a assumirem a responsabilidade por uma parte dos que chegam às fronteiras externas da União em busca de refúgio. No equilíbrio entre solidariedade e responsabilidade, o novo regulamento estabelece um limite mínimo de 30 mil imigrantes por ano para realocações, por transferência de países sob pressão migratória para outros estados da União. É, no entanto, um número limitado. Daí que os sócios que se recusem a aceitar pessoas realocadas se obriguem a contribuir com 20 mil euros por cada imigrante rejeitado para o cabaz comum de “solidariedade” ou, em contrapartida, contribuir com meios técnicos e logísticos quantificáveis.

Só no ano passado, chegaram à União quase 200 mil pessoas em situação irregular e, embora em número muito inferior ao pico alcançado na chamada “crise dos refugiados”, trata-se agora de um fluxo regular, alimentado por redes mafiosas de tráfico humano, que tem gerado enormes tensões sobretudo nos países recetores da linha de frente — Espanha, Itália e Grécia –, que alertam para a falta de recursos, mas também entre os demais membros, relutantes em admitir uma quota mais equitativa na distribuição de imigrantes. Para além da resistência de países como a Polónia ou a Hungria, no debate deste pacto migratório, que terá de passar no Parlamento de Estrasburgo, a tempo de ser ratificado antes das eleições europeias de 2024, falta ainda regulamentar a forma de gerir eventuais novas crises, bem como a expulsão de migrantes a quem tenham sido indeferidos os pedidos de asilo: poderão ser recambiados não só para os seus países de origem, mas também por arrendamento para países terceiros considerados seguros, com os quais tenham uma “ligação razoável”, o que deixa abertamente nas mãos e ao arbítrio das autoridades nacionais o estabelecimento dessa ligação.

É neste levantamento de novos muros que a memória europeia parece curta. Em número muito superior ao de africanos que agora nos demandam em vagas sucessivas, houve um tempo em que também muitos milhões de europeus, pobres e maltrapilhos, se lançaram ao mar para escapar à fome e ao desastre que era o Velho Continente. O êxodo foi bíblico. De milhares e milhares de portugueses, também. E a América foi, na primeira metade do século passado, um dos principais destinos, o porto menos inseguro do Novo Mundo. Então, como agora, em desespero, fugia-se da fome, da guerra, da miséria ou da perseguição. Quando agora sugerem a criação de “plataformas de desembarque para migrantes”, do lado de cá do Mediterrâneo ou por subarrendamento, em território de terceiros, os chefes europeus insistem em ignorar que as desigualdades são o motor de fuga e a razão pela qual tantos milhares de humanos se arriscam ao naufrágio para bater à porta da Europa, à procura de uma oportunidade num mundo que já não é novo.

 

 

Afonso Camões

 

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