
O Museu Nacional da Música, que durante quase três décadas ocupou um espaço na estação de metro do Alto dos Moinhos, em Lisboa, mudou-se para a área palaciana do Real Edifício de Mafra, utilizada pela Escola das Armas durante o século XX.
“Mas há várias décadas que o espaço está vazio, porque já não tinha destino e, portanto, nesse sentido foi grande a nossa felicidade de poder vir para cá, porque também é uma forma de reabilitar um espaço que é património mundial e que, por todas as razões e mais alguma, merece esse destaque, esse novo futuro, esse futuro sonoro musical”, contou o diretor do museu, Edward Ayres d’Abreu, numa visita guiada aos bastidores da montagem.
A entrada faz-se por um corredor frio e austero, de grandes abóbadas, impregnado de cheiro a tinta e madeira, que dá acesso ao espaço museológico, composto por 15 salas de exposição, dispersas por dois mil metros quadrados, onde grandes vitrinas de vidro guardam centenas de objetos organizados de forma a fazer daquela uma “coleção viva”.
“Nós vamos ter em exposição cerca de 500 objetos, não apenas instrumentos musicais, mas também ferramentas de construção de instrumentos musicais, temos vários quadros, iconografia variada, partituras, fonogramas, que oferecem ao visitante esta viagem pela música ao longo dos séculos e das regiões”, afirmou o diretor.
O museu abarca ainda uma outra área maior, a rondar os sete mil metros quadrados, que guardará as reservas e disponibilizará espaços comuns, como cafetaria e loja.
Marcando a diferença para aquilo que era anteriormente o museu, esta exposição está organizada “não em função do aspeto tecnológico do instrumento, mas sim em função dos usos que esses instrumentos conheceram em alguns contextos privilegiados”.
O musicólogo explicou que os colecionadores tendem a classificar os instrumentos pelo som que produzem, mas aqui o que aconteceu foi terem concluído que “interessa pouco o lado tecnológico”, mas sim “o que nos diz que músicos tocaram que instrumentos, quando e em que contexto”.
“Falamos, por exemplo, da ideia de transcendente, da ideia de poder, de como a música pode ser um instrumento de representação de um Estado, como a música pode ser um meio para chegarmos a um qualquer além conhecido”, uma “experiência que nos convida a repensar o lugar da música no nosso quotidiano”, afirmou Edward Ayres d’Abreu.
É por isso que quem visita a exposição percebe a preocupação da curadoria de pôr em diálogo instrumentos aparentemente contrastantes, como peças clássicas ao lado de um autorretrato do ex-rapper Allen Halloween, exemplares de reco-reco junto a apitos de Barcelos, instrumentos do século XII ao lado de outros do século XXI, instrumentos portugueses ao lado de instrumentos chineses, africanos e de outros países europeus.
“Justamente porque, apesar de contrastantes e aparentemente distantes, por alguma razão, estes instrumentos são na verdade muito próximos, foram utilizados em contextos similares, foram utilizados com propósitos parecidos, e é essa a riqueza, esse diálogo rico entre objetos distantes que nós queremos realçar”.
O renascido Museu da Música conta com peças cedidas pelo Museu do Azulejo, pelo Museu Nacional de Soares dos Reis, Museu dos Biscainhos, Museu da Música Mecânica, Museu de Arte Contemporânea e colecionadores privados.
No aparente sossego do museu ainda fechado ao público, o contraste também se faz entre a organização das salas já concluídas com as suas vitrinas iluminadas e vibrantes de vida e cor, e a desordem causada por caixotes empilhados, cartões dispersos e emaranhados de cabos, fios e plásticos espalhados pelo chão.
Uma dessas salas, a que se chamou “Pluralidade de escutas”, é um salão imersivo, em que o visitante “é convidado a entrar num espaço rodeado por 22 colunas de som, quatro ecrãs LED gigantes. Depois, no centro existem uns dispositivos que traduzem som e vibrações táteis, que podem ser sentidos com as mãos e com os pés”, explicou.
Neste espaço multimédia, que passará também documentários, a azáfama era ainda grande, dias antes da inauguração, com homens munidos de ferramentas várias empoleirados em andaimes, ou a subir e a descer escadotes, para colocar grandes e pesadas cortinas, de cima a baixo, ao longo das paredes, “muito importantes para o controlo acústico”.
“Já foi feito um tratamento às abóbadas para reduzir a reverberação e agora as cortinas vão ajudar ainda mais”, explicou o responsável.
Este projeto é outra das apostas para o novo museu: torná-lo um espaço multissensorial e inclusivo, razão por que, além da possibilidade de sentir o som, há uma outra sala que oferecerá uma experiência olfativa, haverá vídeoguia em língua gestual portuguesa, audiodescrição para cegos e coletes vibratórios que ampliam e reforçam as vibrações sentidas com as mãos e os pés.
Ainda nesta perspetiva interativa, todas as salas vão ter pelo menos um instrumento que pode ser tocado pelo visitante, o primeiro dos quais é um gongo, com três maços diferentes, que permitem produzir sons diversos.
“O instrumento no músico torna-se parte do corpo dele. É interessante o visitante perceber isso, pegar numa tuba ou num flautim [disponíveis numa das salas], experimentar o som, o peso ou só tocar neles”.
Dois homens que passavam pela sala, transportando um objeto grande embrulhado em papel branco, foram interpelados pelo diretor do museu, que lhes pediu que mostrassem aquela “réplica exata de uma harpaneta do século XVII que está exposta numa das vitrinas”.
Um desses homens é o autor da peça, o construtor de cordofones Orlando Trindade, que fez também várias intervenções de restauro, e fabricou aquele instrumento para que os visitantes pudessem tocar.
“Tentei fazer o mais parecido possível com o original, mas com o meu cunho. Nunca tinha feito uma harpaneta, foi a primeira vez”, contou, demonstrando como se toca.
Entre as centenas de peças expostas, alguma mereceram uma atenção especial do diretor do museu durante a visita, como é o caso de um violoncelo Stradivarius de D. Luis, um Regal, que é “uma joia” do século XVI, cedido pela Academia de Ciências de Lisboa e cuja origem é desconhecida, um pianoforte de mesa que é o mais antigo da Península Ibérica, duas pandeiretas pintadas por D. Carlos ou um cravo de Luis XVI.
A investigação levada a cabo pela equipa nos últimos dois anos, desde que o museu fechou em Lisboa, a propósito do projeto de mudança, permitiu “conhecer melhor a coleção” e descobrir “coisas muito importantes, como datações erradas, autorias também mal atribuídas, e até o próprio número de instrumentos foi alterado”, revelou.
“No âmbito da nossa campanha de restauros e de conservação dos instrumentos, descobrimos coisas muito importantes e devemos iniciar o processo de classificação de alguns objetos como Tesouro Nacional, porque são objetos raríssimos, tecnologicamente desafiantes para o seu tempo, estão em excelente estado de conservação e são importantíssimos para a compreensão do que foi e, em certa medida, do que poderá ser a História da música em Portugal”, destacou, assinalando estar a falar de perto de meia dúzia de peças.
Uma das grandes surpresas foi a descoberta de um cacofone, “um instrumento curioso e sofisticado, que não há em mais parte nenhuma”, e cuja origem só foi percebida após uma cuidada investigação: um amador quase desconhecido que trabalhava numa olaria em Alcoutim.
Ainda em instalação está uma “sala que vai falar da voz como instrumento”, e que terá megafone, lamiré, instrumentos multimédia e até um Drilbu, que marca a recitação, nas práticas religiosas hindus.
Edward Ayres d’Abreu olha em volta, para as salas por terminar, o corrupio de pessoas a ultimar instalações, as caixas e os materiais espalhados, entulho para arrumar e limpar, a poucos dias da inauguração, que acontece sábado, dia a partir do qual as entradas serão gratuitas até ao final de novembro.
Questionado sobre se está em pânico com o que ainda há para fazer, o diretor do museu sorri e responde: “Estamos sempre em pânico, mas está tudo controlado”.
Fonte : Notícias ao Minuto

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